Steven Engler fala com exclusividade para a FAUSTO sobre um dos temas mais áridos da atualidade: Estado Islâmico. Emitir opinião sobre o assunto é tarefa das mais difíceis, principalmente porque a mídia tradicional não explora os meandros dessa relação complexa – e como nós, ocidentais, separamos minimamente religião de política – tudo fica ainda mais difícil de entender. Professor de Estudos Religiosos da Universidade Mount Royal, em Calgary, Canadá, doutor em Religião pela Universidade Concordia, Montreal, Engler explica as intrincadas características do ISIS. E por isso mesmo alerta: “estamos preparados para lidar com as ações destes novos grupos sem entendê-los?” Leitura obrigatória.
FAUSTO – É possível compreender a intrincada mentalidade do Estado Islâmico partindo da maneira ocidental de compreender política e religião?
Steven Engler: Se entendermos a “maneira ocidental de compreender” como sendo uma tendência a distinguir nitidamente política e religião, a resposta é não. Não dá para entender o Estado Islâmico assim.
E como seria possível?
Para entender o islã, é necessário reconhecer que a base da religião é a submissão à vontade de Deus – revelado, segundo os muçulmanos, em seu livro sagrado, o Qurão. Aliás, isso se aplica não somente aos assuntos ditos “religiosos”, como a todas as esferas da vida humana, espiritual e material, doméstica e pública, individual e social. Ou seja, qualquer tipo de pensamento que divide a religião da ética, da política, da economia, é superficial. Todos estas, e quaisquer outras dimensões da vida humana, devem ser orientadas pela vontade de Deus. Deste ponto de vista islâmico, dá para ver por que o mundo “ocidental” parece andar do lado errado.
Dê um exemplo?
Se um país separa a religião da política até na sua Constituição – veja os Estados Unidos com sua famosa separação entre Igreja e Estado – isso não seria um afastamento de Deus das leis, das políticas e dos processos governamentais? Não seria isso um desrespeito a Deus e uma receita para uma sociedade impiedosa? Como é que um país chega a dizer que Deus não tem nada a ver com sua maneira de organizar a nação e a vida pública? Muitos cristãos, especialmente entre os evangélicos nos Estados Unidos, estão de acordo, em termos gerais, com essa crítica islâmica.
Mas…
Sim, há outra “maneira ocidental de compreender política e religião”, que também atrapalha a visão não só do islã, mas de muitas outras sociedades e culturas.
E qual seria?
O mito da suposta “grande divisão” entre o mundo “tradicional” e o mundo “moderno.” Este ponto de vista leva à conclusão falsa e superficial de que o Estado Islâmico pode ser explicado como sendo parte de uma religião e de uma sociedade retrógrada ou até primitiva. Pensar assim é pensar que o mundo ocidental é racional e o Estado Islâmico irracional. É sempre uma saída fácil – porém, preguiçosa e medrosa – de chamar o estranho de louco.
Difícil…
Claro, mas não haverá nenhuma necessidade de esforço para entender o outro e suas crenças e ações como sendo racionais do ponto de vista dele. Tentar entender as crenças do outro – mesmo que pareçam do nosso ponto de vista turvas, exóticas, desagradáveis ou até imorais – é a essência do estudo das religiões, a área em que pesquiso e leciono. Hoje em dia, fala-se de modernidades múltiplas, entrelaçadas, fragmentadas.
Não há mais um único modelo?
Foi-se a época em que se imaginava que o mundo inteiro iria, ou deveria, chegar a se igualar aos Estados Unidos ou à Europa ocidental. Quer dizer, revelou-se a bobagem de imaginar que estes países sejam os únicos modelos do que é “moderno.” Hoje, vemos que as modernidades refletem não uma única pista de desenvolvimento, mas uma série de encontros entre culturas no contexto da globalização. A América Latina tem as suas modernidades. E o mundo islâmico tem as suas.
É preciso então os contextos…
Devemos entender cada caso no seu devido contexto. Tratando-se do Estado Islâmico, contudo, é preciso levar em conta não somente o islã – e a divergência do Estado Islâmico das posições majoritárias desta religião –, mas também a história do califado, o colonialismo e as guerras recentes lideradas pelos Estados Unidos. Nestes acontecimentos históricos, dificilmente separa-se religião da política e da economia.
A mídia reduz os atos terroristas a uma simples batalha entre o bem e o mal?
A mídia funciona com enquadramentos temáticos: conflito, consenso, interesse humano, novidade, entre outros. Isso reflete em parte as pressões do jornalismo: a necessidade de atrair atenção de consumidores, de comunicar somente o mais pertinente, sem muitas qualificações ou detalhes, e de cumprir prazos editoriais. É verdade que a cobertura de assuntos ligados à religião sofre por causa disso. Claro, outros assuntos do dia a dia também sofrem por isso, mas no caso de eventos tão complexos quanto à guerra na Síria e no Iraque, há o risco de a mídia apresentar visão por demais estereotipada.
Mas a história do Estado Islâmico é uma história de conflito…
Obviamente. Todavia, é raríssimo ler nos jornais sobre homens que lutam para o Estado Islâmico não porque acreditam em sua ideologia, mas porque ganham salário que sustenta suas famílias. Quantas vezes lemos sobre programas de apoio social elaboradas pelo Estado Islâmico em seus territórios conquistados? Além de guerrilhar, ele tenta de certa forma funcionar como um “Estado”. Não que suas estruturas sociais não tenham grandes problemas. Por exemplo, o sistema de educação infantil funciona como forma de doutrinação. Ou seja, ameaça causar problemas futuros, seja qual for o resultado do conflito atual.
Há mais exemplos?
Vemos diferenças ideológicas entre as várias fontes de notícias. Algumas são mais dispostas a simplesmente demonizar o Estado Islâmico e dar “ficha limpa” aos países que colonizaram o Oriente Médio, e também aos que levaram e levam guerra aos lares de muitas pessoas inocentes nessa região. Outros, porém raros, apontam demais para estes fatores externos, dando atenção insuficiente aos horrores dos atos cometidos pelo Estado Islâmico. A verdade, complexa e complicada como sempre, fica no meio, e não cabe a uma rápida peça jornalística oferecer uma análise robusta.
A mídia tem a responsabilidade de separar a religião islâmica do Estado Islâmico? Porque se recusando a fazer isso inflama a intolerância religiosa?
A mídia tem, sim, grande responsabilidade. É fato que as representações errôneas e superficiais do islã podem inflamar intolerância. A mídia precisa comunicar melhor o papel da religião neste conflito. Não podemos entender o Estado Islâmico sem sua dimensão islâmica – ou seja, ao lado das dimensões políticas, econômicas, etc. Igualmente, não é possível entendê-lo sem traçar uma distinção nítida entre seu tipo particular do islã e tipos majoritários.
Como assim?
O Estado Islâmico é um tipo de salafismo e tem características diferentes do islã majoritário. Rejeitar o islã na base das ações do Estado Islâmico seria como rejeitar o budismo na base das ações do Aum Shinrikyo, uma seita apocalíptica, com certa base no budismo, que realizou um ataque com gás sarin no Metrô de Tóquio, em 1995. Este ato de terror comprova que o budismo é uma religião violenta? Ou salienta a necessidade de entendermos as variações entre tipos de budismo?
O que é o salafismo?
O salafismo é uma tendência doutrinal disparada e fragmentada dentro do islamismo sunita. É caracterizada por sua ênfase nos “ancestrais piedosos”: as primeiras gerações de muçulmanos. Estes são considerados modelos ideais do pensamento e do comportamento islâmicos. O salafismo aceita como fontes de autoridade o Qurão e a Sunna.
O que significa Sunna?
Significa o modelo do profeta e da comunidade original, como encontrado nos hadiths, mas o salafismo minimiza ou até rejeita desenvolvimentos doutrinais subsequentes, especialmente as quatro escolas da lei sunita.
E o que mais?
Os muitos sub-movimentos no salafismo variam entre quatro maneiras: um, de uma postura apocalíptica a outra violenta; dois, da rejeição parcial à rejeição total e radical das quatro escolas estabelecidas da lei sunita; três, da ênfase limitada à ênfase central em jihad – o uso “legítimo” da violência em defesa da comunidade muçulmana; e, quatro, de uma postura inclusiva a outra radicalmente takfiri, que acredita que os muçulmanos não-salafistas são equivalentes aos infiéis.
Qual é a ponte com o terrorismo?
O Estado Islâmico – tal como a Al-Qaeda e o Boko Haram, na Nigéria – está no extremo radical de cada um desses quatro eixos de variação: politicamente ativista, rejeitam a maior parte da tradição legal; e mantém jihad e o takfir como fundamentais para o “verdadeiro” islã. Por esse motivo, podemos entender o Estado Islâmico como Salafismo-Jihadi-Takfiri. Ou seja, é um sub-tipo de um sub-tipo de um sub-tipo do islã, longe do xiismo, estranho aos sunitas majoritários, e mesmo divergindo da maioria dos muçulmanos Salafi. Se a mídia não enquadrar o Estado Islâmico na sua especificidade assim, pode bem ser que inflame, sim, a intolerância religiosa, pelo simples fato de propagar uma visão superficial e até falsa do islã.
Há comparação entre o Estado Islâmico e aspectos de outras religiões?
Em termos religiosos, o ponto chave do Estado Islâmico é o seu modo de autoridade. Para o islã majoritário, existe uma hierarquia de fontes de autoridade: o Qurão primeiro, depois a Sunna; depois as escolas de lei; e depois as tradições dos líderes do pensamento islâmico. Estes últimos dois foram desenvolvidos durante mais de mil anos. Constituem uma tradição religiosa, que de certa maneira continua a se desenvolver até hoje. A função da tradição, tanto na esfera religiosa quanto nas esferas não-religiosas, é conservadora. A tradição resiste à inovação, ao radicalismo, à grande divergência do caminho mais percorrido.
E quando é diferente?
A autoridade no salafismo funciona de maneira bem diferente. Primeiro, o salafismo – com sua ênfase estreita ao Qurão e à Sunna – deixa de lado mais de mil anos de tradição legal e intelectual. Isso abre a porta para pontos de vista muito divergentes comparados ao islã majoritário. Segundo, a autoridade no salafismo se apresenta como baseada na vontade de Deus. Quer dizer, oferece uma interpretação de Qurão e Sunna como se fosse a única verdadeira interpretação. Assim tem uma característica chave da autoridade carismática: são os líderes individuais, autorizados dentro da comunidade, que pronunciam interpretações autoritárias do Qurão, da Sunna e do modelo dos ancestrais piedosos. Como no islamismo em geral, essa autoridade é reservado aos homens. A natureza pessoal desta autoridade se reflete no fato de que vários líderes salafistas tendem a discordar em suas interpretações. O que temos no salafismo, portanto, é uma autoridade carismática, pessoal, contingente, que se apresenta como um eco da revelação divina. Apresenta certas interpretações – entre muitas possíveis – como se estivessem em um status universal e absoluto.
E em outras religiões?
Este modo de autoridade aparece em outros contextos religiosos. De fato, é uma posição no espectro hermenêutico das religiões monoteístas, uma possibilidade extrema, porém previsível, da interpretação. Certos discursos evangélicos adotam a mesma estratégia de autoridade.
Por exemplo?
O grupo cristão estadunidense Army of God (Exército de Deus). Eles justificam seus próprios atos terroristas usando a mesma lógica. Os líderes interpretam passagens bíblicas – por exemplo, Provérbios 24:11-12 – para justificar homicídio, atirando em médicos que fazem abortos e colocando bombas em clubes frequentados por homossexuais. Assim como no Estado Islâmico, o Exército de Deus segue uma interpretação radical como se fosse a única interpretação cabível da vontade de Deus. O islã radical e o cristianismo radical são bem comparáveis neste contexto limitado: seguem um modelo muito parecido de autoridade religiosa.
Políticos deveriam saber mais sobre religiões para lidar melhor com fenômenos como o Estado Islâmico?
Se políticos, e o público em geral, não entendem as diferenças entre o Estado Islâmico e o islã majoritário, como é que podem compreender a situação que rege hoje no Iraque e na Síria? O problema é maior do que isso. O número de grupos Salafismo-Jihadi-Takfiri está aumentando no mundo, não somente no Oriente Médio, mas também na África e na Ásia. Estaremos preparados para lidar com as ações destes novos grupos sem entendê-los?