Se você tem impulsos religiosos, mas os resiste porque “não quer ser um desses”, você não está sozinho. Se se pergunta sobre a possibilidade de conhecer mais a Deus e viver experiências religiosas sem doutrinas a tiracolo, instituições ou vieses políticos-ideológicos, você também não está sozinho. Se frívolas correntes religiosas facebookianas expressadas por memes cheios de “verdades” não o representam, você não está mesmo sozinho. Formado em Teologia, Tiago Arrais é PhD em Antigo Testamento e Filosofia pela Andrews University, Michigan, Estados Unidos; além, claro, de parte da dupla de folk Os Arrais. Para além, muito além de um jovem músico, Tiago reapresenta a Bíblia como ela é: um manual para lidar com a ausência de Deus no mundo e o espelho que revela a natureza humana. Ousado, para alguns; petulante, para outros, Tiago Arrais pode representar também um grande alívio. Com exclusividade para a FAUSTO.
FAUSTO – Falta teologia no dia a dia da maior parte dos religiosos?
Tiago Arrais: Minha impressão é que existem pelo menos duas formas de entender o que é teologia. Em primeiro lugar, temos o que é tradicionalmente entendido por teologia, que é aquilo que se aprende no seminário. São informações sobre o Deus da Bíblia que teólogos processaram e colocaram dentro de um livro como se fosse a terceira revelação de um anjo. Muito tempo é dedicado para debates teológicos, perspectivas distintas, “o teólogo A disse isso” e “teólogo B disse aquilo” etc. Em outras palavras, o texto bíblico e a forma de vida que acompanha o seu entendimento acabam interessando menos agora do que a conclusão desses teólogos. Tenho muita dificuldade em dizer que isso é necessário para a vida religiosa. A grande maioria das pessoas não tem acesso a essas discussões que até podem ser estimulantes e podem acrescentar algo para o aspecto cognitivo do entendimento de um texto, mas sinto que de alguma forma estamos cada vez mais distantes da realidade do que é a teologia, justamente por acharmos que se resume em informações sobre a Bíblia – o que acabou por se tornar mais importante do que a própria Bíblia, além da forma de vida que a acompanha, a resposta que exige do leitor.
E sobre o segundo tipo de teologia, a que se refere?
O teólogo não é necessariamente aquele que estuda teologia ou o acadêmico. Teologia significa etimologicamente o estudo ou o entendimento de Deus. A ideia de que entendemos Deus apenas na esfera das ideias é grega, não bíblica. Teologia, no fim das contas, é uma interpretação da linguagem da Bíblia, seu aspecto cognitivo, que deságua numa forma de vida, seu aspecto ético/existencial. É um entendimento do vocabulário bíblico que leva a uma experiência. O que é fé, o que é culpa, perdão, pecado. Não tem a ver também apenas com o descobrimento cognitivo, mas com internalizar essa realidade e passar a vivê-la. Há pessoas que acham que ler um livro sobre oração, mas sem nunca ter orado, faz dela uma pessoa teologicamente entendida sobre o que é oração. Ela não entende coisa nenhuma! Agora, quando você internaliza essa linguagem, passando a viver a fé de Davi, ou quando vive os erros de Abraão, de Isaque e de Jacó, ou se vê nessa situação de piedade, culpa, pecado, salvação, é que você passa a entender de teologia. O meu avó Arrais, que tem 90 anos de idade e aprendeu a ler a Bíblia fumando um cigarrinho de palha, para mim é mais teólogo do que muitos professores de teologia que conheço. Porque ele é um cara que aprendeu a ler o texto e a viver essa realidade, mesmo sem ter pisado em um seminário. É nesse segundo sentido, inclusive, que até poderia me considerar um teólogo, no primeiro não. Estou tentando entender a linguagem da Bíblia, para que eu viva dentro da forma de vida que a Bíblia advoga. Uma forma de vida radicalmente diferente do que as próprias igrejas cristãs, mídia, sociedade, muitas vezes não expressam bem. É o tipo clássico de teologia que as igrejas cristãs precisam? Digo que não. Já esse segundo tipo, acho extremamente necessário. Mas para isso acontecer, para que a igreja cristã entenda a centralidade e importância do estudo da Bíblia que conduz a uma forma de vida será preciso modificar a liturgia porque hoje nada é centrado no texto, é centrado em qualquer outra coisa: no anúncio, na oferta, na música, no sermão.
O segundo tipo de teologia perdeu espaço para o quê?
Para o tradicionalismo. Deixe que o líder, o pastor, o padre, o bispo leia a Bíblia para mim. Essa é a postura hoje. As pessoas não gostam de ler a Bíblia por elas mesmas. Quando você isola a Bíblia, você coloca outras coisas como mais importantes – ou a vaidade do líder religioso, ou respostas prontas do tipo: “Você está sofrendo? Confie em Deus que tudo ficará bem.” Se você for à Bíblia, verá que nem tudo foi bem para muitos que confiaram em Deus. José é um exemplo. Fez tudo certo e “se lascou”. Judá fez tudo errado e foi abençoado. E curiosamente a linhagem de Jesus é de Judá, e não de José. A Bíblia é um contraponto para os clichês religiosos de hoje em dia. E clichês aparecem em abundância quando a Bíblia é colocada de escanteio.
Há um conflito entre estética e ética?
Este embate, para mim, é consequência clara da ausência da Bíblia. Como diz Kierkegaard, o que era subjetivo agora é objetivo. Os valores de humildade, fé, amor, que nascem dentro do ser humano e deságuam em ações corretas, hoje interessam menos do que outras coisas. Hoje, olho para você e determino que tipo de cristão você é. Se pegarmos o exemplo das bem-aventuranças, todos eles falam de aspectos internos. Deus sempre está de olho no coração do homem: “Este povo me honra com os lábios, mas o coração está longe de mim, em vão me prestam culto, pois o que ensinam são apenas mandamentos humanos” [Mateus 15:8-9]. Esse dilema é a bandeira vermelha da ausência da Bíblia. Mas, ao invés de nos centrarmos nessas qualidades, o cristianismo, em geral, foca no externo: em como o cristão deve se parecer, com quem deve ou não se misturar, aonde deve ou não ir. Este é um cristianismo centrado apenas no indivíduo “cristão” e não no próximo. E isso, ironicamente, é praticamente o oposto do que encontramos nos evangelhos. Tem a questão do poder também. Por exemplo, se como líder religioso eu adiciono regras: “não pode isso”, “não pode aquilo”, crio toda uma gama de controle. Se você estiver fora disso, você já não faz parte do nosso grupo. Isso é extremamente problemático. É o grande inquisidor em Dostoiévski. [Os Irmãos Karamazov]. É absurdo! Toda a retórica do bispo é completamente verdadeira neste contexto. As religiões, ou a palavra do líder religioso, são o filtro pelo qual passa a voz de Deus? Isso pode ser extremamente perigoso. Enquanto a Bíblia fala de verdades através de poesia, prosa, narrativa, muitas igrejas e líderes reduziram isso a clichês, tradições, e regras. E isso é uma tragédia.
Uma vez que a religião estimula o pensar e o agir humanos, onde estaria o problema que acaba por tornar o religioso, grosso modo, uma pessoa alienada e conformada?
Isso é resultado do que chamei de primeira teologia. Você tem doutrinas que propõem alguma coisa e os autores que as instituições abraçam resolvem tudo, tem resposta para tudo. Por qual razão as pessoas vão querer ler a Bíblia? O alienado é resultado de uma teologia desconectada do divino, desconectado da vida. Uma das primeiras aulas que costumo dar, sobre os fundamentos do cristianismo, é que cristianismo não existe. Vemos isso em Kiekergaard [Prática do Cristianismo]. Para mim, o mais importante é o vocabulário bíblico. Minhas músicas têm esse papel, minhas aulas, enfim, tudo. Procuro fazer isso. As pessoas em geral, a massa cristã, não leem mais e por isso não pensam mais. O cristianismo Bíblico, que carrega o seu próprio vocabulário e consequentemente sua própria possibilidade do que é viver, provoca. Conformismo é o oposto do sermão da montanha em Mateus 5-7. Mas esse é de alguma maneira o “cristianismo” de hoje.
Dê um exemplo de algo que é pregado, mas que está desconectado da Bíblia.
Na Bíblia não há a palavra “cristianismo”, há “discípulos”, há “caminho”, o que já mostra essa conexão entre o que penso e como ando. Jesus foi embora, os discípulos ficaram sozinhos. E ao contrário do que se prega, Jesus não está conosco, pelo menos não de acordo com a Bíblia. Depois de sua ascensão os anjos dizem para os discípulos que da mesma forma que ele subiu, um dia irá descer. É por isso que ele nos enviou o Consolador, o Espírito. A Bíblia, em muitos aspectos, é um manual de como lidar com a ausência de Deus. Veja a experiência dos Patriarcas de Gênesis, veja o livro de Salmos, veja a própria mensagem dos Profetas! Mas e o Espírito? O Espírito de acordo com a Bíblia não está sujeito à manipulação humana, não tem controle. Ele sopra para onde ele quer. Então, estamos sozinhos. E é quando entendemos isso que a experiência de culto, a necessidade da liturgia, passa a ser mais significativa. A experiência de culto deveria ter essa dimensão. Estamos sozinhos, aguardando o retorno de Jesus, ansiando por ter um antegosto de sua presença através do Espírito, na expectativa de ouvir a voz de Deus e consequentemente experienciar sua presença ao ouvirmos Sua voz através da Bíblia. Eu queria ter essa experiência pelas igrejas por onde vou, de diversas denominações, mas é raro encontrar algo assim. Pouca Bíblia significa pouco significado. Pessoas estão em busca de significado, mas se conformam com um elusivo milagre, ou com o conforto de uma oferta que resultará em benção, ou com um louvor que apela aos sentidos e anestesia o sofrimento momentâneo.
Costumamos lamentar a perda de valores, as relações que estão cada vez mais superficiais, mas essas reflexões que nascem em nós não são feitas a partir do outro. Elas não deveriam partir de nós mesmos?
Estaríamos falando então de responsabilidade. Heschel fala que uma das características que distinguem o ser humano dos animais é a capacidade de autorreflexão. Quando isso não acontece, o ser humano vive por instinto, é quando se tem uma existência rasa. Essa autorreflexão é necessária e não tem a ver, a princípio, com religião, ela é necessária para o ser humano. Mas é claro que é mais fácil apontar o problema do outro. Agora, no contexto religioso, temos poucas oportunidades de exercitar a responsabilidade. Primeiro porque não temos mais liberdade, porque estamos rodeados por todo o tipo de regra e de líderes que já pensaram pelo indivíduo, e isso tira a sua responsabilidade de agir. Em segundo lugar, voltamos para a Bíblia. Porque uma vez que tiramos a Bíblia do contexto litúrgico, como acontece em grande escala nas reuniões, você deixa de refletir sobre a natureza humana, sobre ética, sobre a realidade pela ótica bíblica. A Bíblia diz sobre quem é Deus, sobre o nosso lugar no mundo, e isso cria em nós uma necessidade de resposta. A raiz de todos os males que acontecem debaixo da bandeira religiosa é a ausência de Bíblia, que gera a ausência de liberdade, que torna o ser humano passivo. E aí vem o erro maior de todos: tudo feito com linguagem religiosa. Você tira o significado bíblico da palavra esperança, fé, obediência e infere novas categorias que não vieram do texto bíblico, mas que vieram do controle, do medo ou do YouTube. E como linguagem em qualquer contexto molda a perspectiva da realidade, muitos vivem uma realidade religiosa com palavras e significados que não vieram do texto, mas sim destas fontes alternativas. Quando digo que não existe muita Bíblia na liturgia, na experiência religiosa de congregações, individualmente estou falando de estudo da Bíblia, de entender Deus do Gênesis até o Apocalipse, na busca por entender também como viveram aquela realidade. Um sermão em uma congregação passiva não consegue alcançar isso. Um sermão tem o seu lugar, mas não pode substituir a educação bíblica que ativamente poderíamos ter nas igrejas. Sem Bíblia não temos revelação, sem revelação não precisamos responder com a vida, e sem resposta não existe responsabilidade.
Considera saudável colocar em dúvida toda ideia que se possa ter sobre Deus?
Com certeza. Grande parte do que acreditamos sobre Deus, fé ou sagrado é inferido pelas grandes tradições ou correntes filosóficas. A distinção do sacro e do profano, por exemplo, é entendida pelos moldes gregos, assim como grande parte dos esquemas doutrinários da igreja cristã. Questionar qualquer ideia ou doutrina, nesse sentido, implica no voltar para o texto bíblico. Se entro no texto duvidando de mim, de tudo o que aprendi, dou o primeiro passo em direção à harmonização do meu pensamento com aquilo que de fato o texto diz. E muitas vezes, essa crise que assume a possibilidade de que não sei, é necessária. Trato disso na música Outono. “Somente uma fé que se abalou, inabalável é”. Descartes aplicou o princípio da dúvida para tudo. A modernidade ensinou o ser humano a confiar na razão e a duvidar de tudo. A Bíblia só inverte isso. A dúvida permanece importante, embora não apenas para o mundo externo. Preciso duvidar de mim mesmo, do que sei, das influências que moldam minha percepção da realidade e de como leio a Bíblia.
Há uma frase do Padre Fábio de Melo que acho bastante interessante: “O ateísmo cresce no mundo porque o Deus anunciado por nós é pior do que nós mesmos”. Estamos vivendo também uma crise de liderança?
Não acredito no Deus que é negado pelos ateus, como não acredito no Deus das religiões que crescem muito, hoje. Se o ateu me conta as razões pelas quais não crê em Deus, é perigoso eu concordar com a maioria delas. E quando um cristão me fala sobre suas razões de crer, é perigoso eu negá-las tanto quanto. Basicamente, o ateísmo moderno é em muitos aspectos uma rejeição ao Deus grego que se tornou, na história, o Deus bíblico, aquele que determina quem vai para o céu ou para o inferno: o Deus que é soberano e, que, consequentemente, tira a liberdade do ser humano. É uma pena que a Bíblia, a religião e a fé, hoje, carreguem significados impostos por uma tradição carregada de filosofia grega – radicalmente diferente da filosofia do próprio texto –, ou pela mídia, sociedade e cultura, que impedem uma experiência significativa.