Quando Sônia, uma menina que se acha feia, deita-se na mesa da casa e desata a rir dizendo estar feliz — ela, em diálogo com Ielena, sua madrasta, personificação da beleza —, vi na cena nossa mesquinhez.
Não suportamos ser os únicos na infelicidade.
Clássico da dramaturgia, Tio Vânia, de Anton Tchekhov, está sendo apresentado pelo Grupo Tapa. Assisti à montagem no Sesc Santana.
Na cena que destaco, Ielena reclama do quanto é infeliz, as desvantagens da beleza, do desejo e da superficialidade das ambições de todos ao seu redor; mas, claro, ela se esquece de olhar para si mesma.
Esse é o modus operandi: o que apontamos no mundo, abstrações, não enxergamos em nós, na concretude. Teoria e prática são Sol e Lua, apenas se cumprimentam de longe.
Tio Vânia é um texto que vai muito além de intrigas amorosas, mágoas de família, ressentimento, inveja, ganância e ironia.
Escrita em 1896, o Tio Vânia não vê a hora de sua vida acabar…
Alerta! Esqueci-me de que não somos capazes de lidar com a questão na qual deitou e rolou Camus, amontoado de décadas depois.
Tio Vânia não é teatro para crianças, não importa a idade. Como disse meu marido na saída: “Só um russo poderia tê-la escrito.”
E não é que me soa que russo já nasce adulto?
Na superfície da trama, um cotidiano alterado pela chegada de Serebriakov, um intelectual egoísta, e sua bela esposa Ielena. Eles retornam ao recanto rural — embora cada vez mais devastado — em razão de uma disputa pela propriedade.
Abstenho-me das questões de relevância ecológica, porque tenho o sangue de Tio Vânia: o que importa, se nada importa?
Estou cheia de dívidas, cansada da mediocridade de meus vizinhos — e sobre o intelectualismo, dia desses me assisti pateticamente feliz dizendo em alto e bom som que não sou mais intelectual, sou romancista!
Quem se importa?
A relevância da dramaturgia de Anton Tchekhov foi e será a ausência de disfarces acerca do que conhecemos por natureza humana, leia-se digressão.
Tio Vânia é minucioso no horror, mas também na poesia religiosa.
O espetáculo é primoroso! Pelo texto, pelo elenco, pela ambiência; sobretudo pelas cenas em que alguns personagens se embebedam e escancaram que não há saída para a existência, a não ser a resiliência para aguentar até quando Deus quiser.
Deus é russo, certamente. Só lá é possível chegar mais perto de compreendê-lo.
A peça tem tradução e direção de Eduardo Tolentino de Araujo. Na constelação que damos nome elenco: Anna Cecília Junqueira, como Sônia; Brian Penido Ross, como Tio Vânia; Zé Carlos Machado, como Serebriakov; Tato Fischer, como o gracioso Bexiga; Lilian Blanc, Maria; Bruno Barchesi, como Astróv.
Ah, talvez seja necessária uma pausa para falar de Astróv, que lida com todo o tipo de anomalias do ser humano, e suas facetas, por seu fazer diário, pois é um jovem médico.
Mas Astróv é das causas ambientais, no sentido da oikophilia, a responsabilidade pela herança que é a terra, e que foi deixada por Deus para nós, mas porque ele se apaixona pela fútil beleza de Ielena, encenada por Camila Czerkes, percebe o fio frágil ao qual se agarra.
A doce Babá, vivida pela grandiosíssima Walderez de Barros, reclama, em sua simplicidade, que nem o chá e nem o almoço são mais servidos na mesma hora.
O cotidiano e sua ordem, tão repelida pelos que creem saber mais, ainda é a tessitura mais delicada capaz de nos dar algum sentido.
Eu, como qualquer um deles, tento apenas chegar ao fim do dia.
“Que horas são?”, alguém pergunta.
A resposta do Tio Vânia é a que eu e muitos queríamos dar.
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