Veneno: esperança ou tranquilidade?

Em Veneno, espetáculo em cartaz no Teatro Estúdio, a plateia participa.

A plateia participa com o mais absoluto silêncio que eu já experimentei em poltronas sem-fim.

Sem-fim, aliás, é a sensação que o luto causa em nossos sentimentos e estados emocionais. Não somos mais os mesmos depois de uma perda — que nunca é apenas uma perda.

O luto provoca, convoca e convida a outras retiradas.

A montagem é inédita no Brasil. O texto pertence à premiada dramaturga holandesa Lot Vekemans. Quem entra em cena: Cleo de Páris e Alexandre Galindo.

A história consiste no reencontro de um ex-casal, cujo filho morreu. Ambos são convocados, depois de dez anos sem se ver, a comparecer ao cemitério; o motivo, a contaminação do solo.

O veneno, no entanto, é outro…

Uma frase da sinopse, que consta numa fala do personagem de Galindo, resume bem a história e o desencadeamento inevitável depois de uma tragédia como essa: duas pessoas que perderam um filho, depois a si mesmas; e, depois, uma à outra.

A tradução do holandês ficou a cargo de Mariângela Guimarães. A direção da peça é de Eric Lenate.

Montada em cerca de 30 países, Veneno é uma sugestão interessantíssima para os paulistanos que buscam refúgio na arte durante a semana.

Encenada às segundas, terças e quartas — na São Paulo venenosa —, os 90 minutos funcionam como antídoto.

A participação da plateia com o silêncio sepulcral é fundamental — uma sublinhagem minha, porque é meu vício. Assisti duas vezes e duas vezes me percebi em silêncio de formas distintas.

A plateia não sabe que só assiste — generalizando, obviamente.

A plateia é uma testemunha!

Testemunha de algo que está acontecendo de verdade, porque no teatro, ainda que se esteja contando uma história fictícia ou ficcional, os atores estão carregados de sentimentos.

Logo, em Veneno, há uma espécie de obrigação de fazer silêncio — diferentemente da obrigação comum num espaço de teatro — que é um silêncio em respeito aos que não são mais os mesmos porque a morte tirou deles uma parte de si — e eles se encarregaram de tirar outras de suas partes; porque, afinal, ninguém sabe o que fazer com o luto.

O luto é uma impressão digital.

Único.

E porque contém todos os registros de quem somos, o luto nos encontra em qualquer lugar.

A experiência de assistir ao espetáculo Veneno é singular de verdade, não é mera palavra vazia, uma vez que impõe, de igual modo, uma responsabilidade — assim como um privilégio.

A responsabilidade é de não tomar partido. A personagem de Cleo de Páris, com sua fala calma, linear, nos implora na sutileza a empatia. O pior tipo de veneno é aquele que se acumula dentro de nós.

Alexandre Galindo — na quarta peça em que o assisto — tem em seus traços idiossincráticos uma facilidade de criar laço com a plateia. Na medida que a peça vai discorrendo, seu personagem cresce porque vai revelando suas intimidades, tornando a memória um afeto, o afeto um sorriso, o sorriso uma concepção de vida; por fim, a permissão para respirarmos.

A forma como o espaço cênico foi configurado — e vale reforçar que o principal ambiente do Teatro Estúdio é multiconfiguracional — remeteu-me a uma gaveta de memórias, potencializada pela iluminação branca que causa ainda mais frieza, e ao som que conduz a um lugar longínquo, que é o lugar do luto. Tudo assinatura de Eric Lenate.

Elegantemente trajados, os figurinos assinados por Fabiano Menna dão-lhes a distinção e a dignidade de que precisam para encontrar um lugar para o choro e permitir que a vida continue.

Essa gaveta de memórias que me veio como imagem — e conheço o luto há dois anos, de pai e mãe no mesmo ano — é uma gaveta que também possui outro recurso, o de tratar, intensificando ou redefinindo todos os acontecimentos ligados a quem se foi. É certo que assistirei uma terceira vez.

Sendo assim, as duas sessões que assisti, ali, fez-me entrar em minha própria gaveta de memórias e me questionar sobre o que é melhor: a esperança ou a tranquilidade?

Assistirei mais uma vez para chegar a mais conclusões desse inescapável destino: o de perder.
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.