Uma celebração da literatura! Para tanto, reunir nomes que veem nos livros todo o amor e toda a riqueza é mais do que essencial. Nomes que construíram suas carreiras sob o mais rígido dos alicerces, o conhecimento. Por isso William Waack, um dos nomes mais respeitados do jornalismo brasileiro, de repertório ímpar e, claro, notória paixão. Com exclusividade para a FAUSTO, o jornalista conta um pouco de sua história, os anos de formação, os clássicos que o impactaram, além de um panorama do Brasil leitor. Hora de preparar o café e conhecer outra face de William Waack. E, claro, sentir o tempo parar, porque é assim quando falamos de literatura.
FAUSTO – O escritor argentino Alberto Manguel tem uma frase que para mim faz muito sentido. Ela diz: “Chegar cedo na vida já é uma perspectiva de vida.” Ela me faz pensar sobre a importância de começar a ler muito cedo e a diferença que isso faz na vida adulta, sei por experiência. Posto isto, o que é ser um leitor no Brasil?
William Waack: Considerando a maioria da população, que tem escassa possibilidade de acesso à informação de qualidade, o que inclui leituras sérias, não temos mais empenho em ler os clássicos. Meus filhos foram alfabetizados na Alemanha, porque fui correspondente em várias cidades da Europa, sobretudo no norte da Europa, e como lá é natural que desde tenra idade as pessoas leiam pelo menos os clássicos do próprio país.
Sim, é absurda a diferença.
No meu caso, quando criança, tive essa oportunidade porque fui aluno de uma instituição de ensino – que hoje não existe mais, foi destruída como parte da ditadura militar contra a esquerdização das escolas – que era o ensino vocacional. Foi uma experiência pedagógica muito avançada para a época. Estou falando da metade dos anos 1960 e começo dos anos 1970. Ou seja, com 10, 11, 12 anos, os alunos eram colocados em contato com os clássicos brasileiros. Clássicos difíceis, como os de Guimarães Rosa. Tínhamos aula de dramaturgia e líamos peças como Os ossos do Barão. Lembro até hoje dessas aulas de teatro. Foi uma experiência muito sólida na minha formação, porque incentivava duas coisas: ler e escrever. Coisa que, hoje, sentimos esse déficit.
Quando atuou como professor, percebia isso?
Fui docente na FAAP durante dez anos, de 2006 a 2016, e percebia como a capacidade de leitura, de absorção dos conteúdos e por consequência a capacidade de escrever – e escrever não é outra coisa do que associação de ideias – era a cada ano um nível pior comparado à turma anterior. Vítimas, coitados, porque não posso colocar a culpa neles; vítimas de uma situação – e não digo sistema –, de um país que foi emburrecendo paulatinamente e esse emburrecimento se nota no fato de que uma imensa parcela da população não tem sequer condições técnicas de absorver conteúdos sofisticados através dos livros e as crianças que passam pelas escolas não são incentivadas a ler. E isso, infelizmente, nessa época de revolução digital só se acentuou.
Como vê o crescimento do marketing de conteúdo? Essa proliferação de textos na internet que quase sempre não dizem nada de relevante, mas porque “ranqueiam” bem, acabam formando conhecimento.
Não é necessariamente novidade, apenas uso de uma nova técnica. A criação de textos de publicidade e propaganda, que pouco tem a ver com a realidade e sobretudo com a criação de uma ficção – seja em torno de um produto ou de uma pessoa – é tão velha quanto a imprensa. Se pegarmos os debates feitos com pena de ganso, no século XVI, entre os que eram a favor ou contra a Reforma Protestante, veremos que não há grande diferença. A panfletagem – como ideia de propagação de uma imagem muito mais do que propagação de um conteúdo – é tão velha quanto a imprensa.
Mas há diferença.
O que acontece hoje, na revolução da informação através das plataformas digitais, é um caldeirão muito maior, mas como técnica não vejo nada de excepcionalmente novo. O mesmo vale para as fake news.
Em que sentido? Que não é algo novo?
O problema não está na criação e no uso desse tipo de ferramenta – ferramenta essa que obriga a criação de textos que tem como objetivo fortalecer algo que não mantém relação com os fatos. O que acho grave é a perda das referências através das quais as pessoas conseguem julgar o quanto daquilo que elas recebem de conteúdo – seja pela internet, mídias sociais ou o que for – realmente é relevante e faz jus à situação em questão, espelhando parte da realidade; ou, ao contrário, é simplesmente algo que elas nem sequer são mais capazes de diferenciar. Ou seja, se é algo que vale ou não vale.
Sim, com certeza.
É nesse grande contexto que elas estão. Fake news não é uma invenção de mentiras, é a perda de padrão de referência para julgar o que é a veracidade objetiva dos fatos. Não estou dizendo com isso que a produção de conteúdo para ranquear empresas seja fake news, apenas que é uma técnica de marketing e propaganda tão velha quanto o marketing e propaganda.
A leitura é um meio ou um fim?
Os dois. Não é possível separar. Uma separação seria artificial. Sem leitura não é possível aprender a escrever. Ninguém que não lê escreve bem. E todas as pessoas que escrevem bem leem muito. Então, a leitura é um fim no sentido da aquisição de repertórios que são essenciais para qualquer objetivo da vida, pessoal ou profissional.
Creio nisso também.
Hoje, vejo com certa preocupação como até mesmo coisas técnicas são substituídas por filmes no YouTube. Claro, algumas coisas até fazem sentido. Entretanto, o que falo é o inverso: as pessoas estão perdendo o hábito da leitura, substituindo-o por podcasts e vídeos. Chega a ser engraçado eu dizer isso porque trabalho com imagem, mas a questão é que ler, em si, é quase uma meditação. E isso é essencial para o nosso próprio equilíbrio.
Essa pergunta é uma provocação de Schopenhauer que escreveu, certa vez, que quando temos o Saber apenas como meio, não somos capazes de realizar nada de realmente grandioso…
Creio que a leitura é muito mais do que um hábito salutar. Ler é uma postura de confronto, no sentido positivo da palavra, de contato e de dedicação às ideias – de outros, de grupos ou o que quer que seja.
E pode provar isso em sua própria carreira.
Fui enviado especial em países com os quais nunca tinha tido contato – ou tinha pouco conhecimento, além daquele que o próprio noticiário trazia no dia a dia. E uma lição que aprendi, executando essa função, é que uma das melhores maneiras de conhecer a cultura de um país é através da literatura desse país.
Sim, com certeza!
Foi por aí que me dediquei a ler clássicos alemães, russos, franceses, ingleses. E é curioso que, para um jornalista focado como fui praticamente minha carreira inteira, no noticiário imediato, do hora-a-hora, como é agora, a leitura desses grandes textos trouxe informação básica extraordinária para entender o que acontece na mente das pessoas.
Por exemplo?
Li muitas coisas de Tolstói porque eu queria entender o que era a tal “alma russa”, principalmente quando fui encarregado de relatar a implosão da União Soviética, 1991 a 1995. Tais leituras me deram muitas ferramentas. Dostoiévski, inclusive, é uma ferramenta jornalística extraordinária para entender os atentados de 2001. Ou para entender como determinadas sociedades encararam passados traumáticos, isso em Crime e castigo. Essas leituras foram úteis, mas também me abriram portas tão inestimáveis e imprevisíveis que teria sido grande desperdício se eu não tivesse me dedicado a elas.
Qual foi o primeiro livro que o impactou de maneira profunda?
Minha mãe enviuvou muito cedo. E depois que ela entrou na faculdade de Sociologia, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da famosa Rua Maria Antônia, ela acabou se casando com um de seus professores, catedrático de Política, o professor Oliveira da Silva Ferreira. Então, desde os 10, 11 anos meu ambiente foi marcado por conversas entre intelectuais de altíssimo nível. Não apenas minha mãe era uma intelectual de extraordinária formação, mas meu padrasto também era de uma erudição espantosa. Eram reitores, catedráticos, doutores que frequentavam nossa sala de visitas. Lembro de ter ajudado a mimeografar a tese de livre-docência do meu padrasto, que foi sobre Gramsci, sobre os 45 cavaleiros húngaros, além de sua tese sobre o surgimento do populismo de esquerda no Peru, nos anos 1930. Não bastasse isso, ainda fui matriculado numa instituição de ensino com professores empolgados em inculcar esse senso de dedicação aos textos mais, digamos, difíceis. Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, para ler com 11, 12 anos, não é brincadeira. Exigia muita dedicação e os professores cobravam.
Hoje, grande parte dos professores não leu Guimarães Rosa.
Então, quando você me pergunta de livros, é curioso lembrar que eu tinha uma coleção de enciclopédias e minha diversão era ficar lendo, lendo e lendo aquilo. Tinha uma parte dedicada sobretudo à Ilíada, de Homero. Eu não li Ilíada, li apenas adaptações. Contudo, o primeiro livro que me marcou muito foi o mesmo que marcou minha mãe. Aliás, ela tem uma presença muito forte em tudo o que posso exibir de humanismo e preocupação com o indivíduo. Ela foi militante de esquerda e meu padrasto foi associado, nos anos 1960, ao regime militar por conta das ideias que ele tinha a respeito dos militares como donos de um projeto nacional para o Brasil. Então, esse constante conflito entre eles foi essencial para minha formação intelectual. Porque me colocou em contato muito cedo com repertório importante.
Imagino que sim, que interessante.
Aos 16, eu já tinha devorado vários clássicos; a trilogia do Trotsky, por influência do meu padrasto. O livro que me marcou muito foi uma série de Romain Rolland, Les Thibault, que foi publicado no começo do século XX, na França, dividido em folhetins, o que era muito comum na época. Não sei qual era a periodicidade, mas os capítulos eram vendidos como são hoje as séries da Netflix ou HBO. Esse livro me marcou muito porque era sobre o período do começo da Primeira Guerra Mundial e sempre fui fascinado por História e por questões militares, e aquilo para mim teve impacto enorme. Eu li Les Thibault aos 13, 14 anos. Algo de ficar chocado mesmo.
Qual é o seu clássico do coração? Existe um?
Li os grandes clássicos numa fase muito tenra. Depois li pouca ficção. Leio muito mais História, sobretudo com viés de relações internacionais e estratégia. Agora, Thomas Mann me marcou muito, Os Buddenbrook. Fui muito cedo para a Alemanha e enquanto aprendia alemão mergulhei nos clássicos alemães, desde Goethe a Heinrich Böll ou Günter Grass. Thomas Mann foi por causa da força que a Alemanha teve na minha formação acadêmica e pessoal. Tolstói, Dostoiévski, e se posso me lembrar de mais, algo de ficar debruçado sobre o livro, García Marquez.
Ah, amo!
Cuja frase dele é meu moto: “vivir para contarla”. Tem o nosso peruano, Vargas Lhosa, sobretudo Conversasiones em la Catedral. É alguém que eu tenho verdadeira veneração como escritor. Como político, em boa parte também; mas como escritor sobretudo. E acho que ele conseguiu isso, juntar os dois universos: o da grande literatura europeia, francesa, principalmente, Flaubert; e essa coisa nossa, do nosso universo sul-americano. Conversasiones em la Catedral me deixou paralisado.
Nossa juventude despreza os clássicos?
O Brasil emburreceu e se tornou muito mais boçal do que era 20, 30 anos. É difícil fugir dessa triste constatação. E isso não é só a juventude. Preocupa-me o estado mental do Brasil e como sugere, em algumas situações, estar caminhando para se tornar um país inviável, incapaz de sair ou superar essa enorme miséria intelectual. E não estou falando de política. Estou falando da miséria intelectual de boa parte das nossas elites. Quando você faz a pergunta “a juventude…”, tenho dificuldade com essa formulação porque a juventude é um universo muito amplo e diversificado para eu dar uma resposta que se encaixa. Agora, vejo com satisfação como parte das pessoas, entre 16 e 25 anos, se dedicou à política e está fazendo política. Isso traz um sentido de renovação e de superação dessa miséria intelectual. Sobre o desprezo, constatei isso como docente, e numa instituição de alto nível, que educa jovens que vem da elite em todas as acepções que podemos dar à palavra elite, mas pode ser fase. É preocupante? Sim. É um fenômeno apenas brasileiro? Não. Sou ainda viciado em ler imprensa alemã, americana e britânica, além de parte da espanhola, e eles têm o mesmo tipo de queixa. É o zeitgeist do nosso tempo. Nunca caí nessa história de que as pessoas tendo os meios tecnológicos ao alcance para se informar mais irão fazê-lo. As evidências são muito fortes.
Ainda acredita no Brasil?
Temos que analisar o Brasil em sua trajetória de longo prazo. E ela não nos favorece.
Principalmente por quê?
Estamos sendo prejudicados pela incapacidade de nossas elites de orientar a sociedade em algum sentido. E creio que elites são importantíssimas. As nossas elites se caracterizaram pela imensa complacência, com pobreza, crime, corrupção, inflação. Nossas elites têm postura do empurrar com a barriga, de não se preocupar de forma alguma com o coletivo, apenas em abraçar ideias que lhes tragam vantagens imediatas, de preferência através da apropriação de bens públicos. Isso é uma característica do Brasil desde o Império. É curioso como, na fase atual do Brasil, as pessoas redescubram o clássico de Raymundo Faoro, Os donos do poder, que nada mais é do que a descrição dessa mistura do público e privado, que é a que leva à prisão do Lula, por exemplo. Esperança de que o Brasil venha se mostrar como do tamanho do nosso território, da nossa população, além das características físicas – solo, clima, recursos, sobretudo água –, e que isso faça o Brasil se constituir aquilo que, pela simples observação desses dados da realidade sugerem que ele pudesse ser, ando muito cético. O que torna os países realmente prósperos, menos desiguais, menos injustos, são as ideias que as elites abraçam. E não vejo nossas elites abraçando ideias que façam, pelo menos na minha geração, o país se libertar disso que sentimos, de um lugar travado, parado, estagnado.