Héctor Lozano: “Merlí é um herói com muitas imperfeições”

O personagem Merlí Bergeron, protagonista da série catalã Merlí, é um professor de filosofia irresistível em sua função. Revoluciona o ensino da disciplina numa típica escola de ensino médio quando insere ideias de grandes pensadores no dia a dia de seus alunos, sem os típicos – e tantas vezes arrogantes – academicismos. O autor da preciosa produção é Héctor Lozano, com quem FAUSTO conversou com exclusividade sobre esse trabalho descontraído e, ao mesmo tempo, sensível; além, claro, de falar sobre a soberana, sota desse baralho misterioso que dá as cartas da vida, a Filosofia. Se você já conhece Merlí, sabe bem do que estamos falando. Se não, melhor já ir tirando o pó daquele velho exemplar de Platão porque, sem dúvida, você não vai resistir.

Francesc Orella, ator que interpreta Merlí.

FAUSTO – O que a filosofia significa para você?
Héctor Lozano: A filosofia é uma ferramenta, como disseram os gregos pré-socráticos, para refletir sobre nosso entorno, fazer perguntas, questionar políticos, ideólogos, sociólogos, etc. Acredito ser importante e necessário pensar o ser humano desde a mais tenra idade.

A filosofia é muito mais importante quando acontece no dia-a-dia e não apenas em artigos acadêmicos cheios de expressões complexas?
É igualmente importante. O que acontece é que, no primeiro caso, você atende a audiência completa. O que me interessou foi precisamente trazer a filosofia para a vida cotidiana, e o espectador percebeu que a filosofia está em todos os lugares e situações, até quando se faz compras. Os artigos acadêmicos, contudo, também são importantes para aprofundar as ideias.

Ensinar é um ato de generosidade?
Sim, acredito que é, e de empatia, e de necessidade de transmitir uma série de conhecimentos, de professor para estudante ou de pai para filho. É importante que o ciclo nunca pare. Os jovens que assistem à série se identificam com Pol, Marc, Tania, que são os protagonistas. E eu acredito que a mensagem chegue até eles.

Merlí é mais anti-herói do que herói?
Merlí é um herói com muitas imperfeições, alguém que o público gostou porque não é perfeito. Personagens de face única não despertam interesse.

Em uma das primeiras cenas, quando Merlí vai morar com sua mãe, ele pendura um retrato de Nietzsche na parede. Nietzsche é o seu filósofo favorito?
Não necessariamente, mas é um deles. Eu amo filósofos que passam mais despercebidos, como os céticos, que são muito engraçados, ou Epicuro.

Curiosamente, o primeiro texto de filosofia que li foi sobre Epicuro, As delícias do Jardim, de José Américo Motta Pessanha, que foi um filósofo brasileiro e também professor de filosofia, além de um grande editor. Eu estava na faculdade de jornalismo, lembro muito bem, ainda, a sensação que tive naquela tarde… Um novo tipo de encantamento…
Esses foram os capítulos que me deixaram especialmente feliz.

Merlí conseguiu refletir muito bem outra coisa: a atmosfera de inveja e ressentimento que envolve professores que ensinam com o coração. Por que uma sala de aula cheia e entusiasmada incomoda tanto?
Creio que é muito complicado ser professor. Admiro-os porque fazem um trabalho muito importante. Eles deveriam cobrar muito mais por esse trabalho. Ficar na frente de 30 adolescentes hoje… pode ser muito difícil. Se esses professores têm vocação, o sucesso é óbvio e imediato, mas nem todos têm, e nem o carisma necessário para alcançar os alunos. Alguns professores se queixaram de que Merlí não é como os professores “reais”. Posso, contudo, dizer sem dúvida: todos nós temos professores que jamais esqueceremos.

Tenho justamente essa sensação… De que você pensa que um professor pode transformar uma vida. A série teve como objetivo homenagear alguém ou algo em particular?
A ideia da série surgiu quando um amigo me contou que ele cuidava de um estudante agorafóbico. O menino não comparecia às aulas porque não conseguia sair de casa. Meu amigo o forçou a sair, a se reconectar com o mundo, e depois de alguns meses o menino voltou ao instituto. Essa é uma das principais histórias da primeira temporada. Então, pensei que seria legal escrever uma série sobre um professor que impacta os alunos, algo como A Sociedade dos Poetas Mortos, só que com um professor mais transgressor, controverso, sedutor…

Aliás, a cena em que Merlí explica o Mito da Caverna para o Ivan é belíssima… Você acha que a série incentivará os jovens a estudar filosofia?
Na Catalunha aumentaram as inscrições para a carreira universitária, e muitas pessoas no Twitter comentam que se apaixonaram pela filosofia por causa da série. Espero que continue assim!

 

Dedico ao filósofo e amigo Renato Janine Ribeiro.
Também ao meu mestre, tão Merlí, o também filósofo Luiz Felipe Pondé.
Da mesma forma, dedico aos inúmeros Merlís Brasil afora, heróis nesse país abandonado. Haverá esperança enquanto houver professores apaixonados.

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.