Paula Picarelli: “Fiquei quase oito anos emburrecendo”

Quando Paula Picarelli lançou Seita – O dia em que entrei para um culto religioso, foi como se tivesse expurgado de uma vez por todas a experiência alienante que viveu por quase oito anos numa comunidade cujos rituais eram à base de ayahuasca, bebida alucinógena. No livro, que não é 100% real – muito menos conta tudo o que a atriz viveu e hoje considera criminoso –, a personagem entrega tudo o que tem para a religião: tempo, trabalhos promissores, muito dinheiro e o irreversível: a juventude. Religião, tema tão vasto, igualmente fascinante e perigoso, não garante que ninguém passe por ele sem se ver enredado por dogmas e fantasias. Sobre todas essas certezas e outras incertezas, Picarelli conversa com a FAUSTO com exclusividade.

Paula Picarelli. Foto: Carlos Sales.

FAUSTO – O tema central desse seu primeiro romance são as consequências da total entrega para a religião?
Paula Picarelli: Tem a ver, mas o que me moveu mesmo foi poder refletir sobre como nos fechamos em círculos de crenças que nos impedem de pensar de maneira diferente. Fico aflita com isso. Fico aflita quando lembro que vivi tanto tempo dessa forma. E me aflige muito saber que pessoas escolhem viver assim. O romance trata de liberdade de pensamento.

Religião é um obstáculo para a liberdade?
Sim, é. Para a liberdade de pensamento, principalmente. Somos responsáveis por nossas ações, mas dentro de nossa mente somos livres. É impossível não considerarmos o que se passa por nossos pensamentos, até porque muitos desses pensamentos são reflexos do nosso corpo. Então, me refiro a isso: sobre podermos entrar em contato com o que sentimos e pensamos. Nosso corpo não é o demônio, não é o vilão, não é o inimigo. Quando somos honestos conosco mesmos, é libertador. Até porque não adianta fugir, de nada adianta recitar mantras. E religião, de modo geral, tenta nos desviar de nós mesmos.

Dê um exemplo.
Novas religiões dizem que o mundo precisa de amor. Só que é impossível amar o tempo todo. Somos humanos. Só vamos conseguir lidar com o monstro que se tornou o mundo que criamos quando enxergarmos o monstro que somos. Outra coisa: acho a religião católica a mais triste. Primeiro, porque nega o corpo. O corpo é esse inimigo, as fontes de prazer são inimigas, é preciso viver se humilhando. Como literatura, acho fascinante. Mas só. Recentemente, li o Apocalipse. Aquilo é fruto de uma mente doente. Como ficção, pode até ser fascinante, mas como desejo de que aquilo aconteça, é doentio. A religião tenta nos fazer enxergar o mundo de uma única maneira, mas somos múltiplos.

Como literatura, é mesmo fascinante…
Sim, também gosto. Até para entender o caminho da humanidade, que de outra forma é impossível. E gosto de pensar quais são esses desejos, essa vontade de que algo supremo, perfeito e maravilhoso de fato exista. Esse desejo pelo sublime. Acho bonito e reconheço esse desejo humano. Todavia, faz parte apenas do desejo humano. As religiões nos tiram alguns direitos.

Por exemplo?
Sou cética, hoje. E tenho o direito de ser cética. E quero ser respeitada da mesma forma que pessoas religiosas ou espiritualizadas são. A religião, contudo, ainda assim interfere. O direito ao aborto, por exemplo, não será aprovado por causa de religião. É religião que impede muitas mulheres de abortarem de maneira digna, impedem que muitos médicos saiam da criminalidade porque, claro, essas pessoas não são criminosas. Nem a mulher e nem o médico. Agora, não posso tomar uma decisão por causa de religião. Religião não pode interferir nas leis.

Ainda mantém rituais?
Sim, voltei a fazer alguns. Depois que saí da seita, neguei tudo. Eu fazia todo o tipo de terapias alternativas, daí decidi que eu tinha que me virar sozinha, sem “intermediários”. Caí nas mãos de muitos picaretas. Então, alguns rituais que me davam prazer, voltei a praticá-los.

Por exemplo?
Gosto de ficar um tempão olhando para o céu. Antes, eu pensava que estava captando energias. Hoje, simplesmente fico observando. É bom, me faz bem, me traz paz.

Contemplar.
Como é poderoso acreditar, não? Mentalizar uma coisa e perceber nosso corpo respondendo quimicamente. Digamos que, hoje, eu use esse recurso de maneira mais científica, porque tenho ainda muito medo dos rituais pelas possíveis neuroses que podem desencadear.

Você usou a palavra cética muitas vezes. Hoje, é assim mesmo que você se define?
Sim. Hoje, sou cética. Não acredito em Deus. Passei tantos anos buscando o sinal de Deus no mundo e nada me “provou” que Deus existe. E, hoje, considerando como tudo está, não consigo ver lógica em um Deus tão cruel, vingativo, sádico, que teria previsto tudo isso e ainda assim deixou a humanidade cometer tantas atrocidades.

Essa história de que Deus não interfere porque respeita o livre-arbítrio, não convence?
Não convence. Se Deus deu o livre arbítrio sendo onisciente, ele é sádico. Então, se ele existir não quero ser amiga dele. E por que Deus se esconderia tanto? Por que se mostraria de maneira tão misteriosa, tão simbólica? Há um ditado entre os céticos que diz: Deus é um bolsão de ignorância. Quanto mais conhecemos do mundo, menor Deus vai ficando. Em outros tempos, muitas coisas foram atribuídas a Deus e a ciência provou não ser. Nunca vamos saber de tudo, mas nossas dúvidas, hoje, são menores.

Quanto mais conhecimento, mais angústia sentimos, não? Desligamos-nos de Deus e passamos a conhecer mais coisas, mas também somos bem mais angustiados do que fomos um dia, quando Deus era o centro de tudo. É um paradoxo, não?
[Dá risada]

O problema do ser humano sempre vai estar na negação de suas limitações? Seja do conhecimento, que é o de menos, ou do próprio terror…
Ou da morte.

Sim, da morte. Não buscamos a religião justamente porque não sabemos lidar com nossa impotência? Um exemplo simples: talvez, antes, ao vermos o Sol nascer, pensávamos que era Deus. Hoje, sabemos que é um astro e tal, e que nasce independentemente de nós…
E isso não é bonito?

Pode até ser, porém, mostra o quanto somos insignificantes.
Também encontramos na ciência tudo o que quisermos. Encontramos beleza, o sublime, encontramos comédia, tragédia, sentimentos.

Seu ceticismo pode ser uma reação por você não ter conseguido “provar” a existência de Deus?
É possível… Mas é doloroso abandonar a fé também. Embora também seja libertador acordar sabendo que não há assombrações, que a falta de atividades físicas, por exemplo, desencadeiam pensamentos ruins, e não necessariamente você que é uma pessoa ruim. É libertador reconhecer os próprios pensamentos ruins – ruins entre aspas – porque isso é ter consciência de si mesmo.

O que foi mais difícil de lidar depois que deixou de crer?
Encarar a hipótese de que não vou mais encontrar pessoas que amo e que já não estão mais aqui. E que vou morrer e minha filha vai continuar existindo, e eu não vou mais acompanhar a vida dela. Só que isso é o mundo adulto, não? Encarar que a vida é só isso mesmo. Talvez, eu tenha deixado o mundo da infância, que era o das crenças religiosas, e tenha entrado no mundo adulto, de ter que encarar a dureza das coisas. O engraçado é que agora vivo a vida com mais intensidade. Eticamente, também me percebo melhor. Quando eu pertencia a uma religião, me achava superior, achava que as outras pessoas eram coitadas. E eu rezava por elas. Isso é arrogância.

E se sua filha quiser pertencer a uma religião?
Vou dizer: “onde foi que eu errei?” [Dá risada] Vou dar a ela todas as informações que eu puder e ela fará as próprias escolhas. Fico imaginando minha família quando eu estava naquela seita… Coitados dos meus pais!

Como substituiu o espaço da religião?
Com literatura, cinema, tentei correr atrás do tempo perdido. Fiquei quase oito anos emburrecendo. Tudo o que conheci nesse tempo eu fazia com que se curvasse e coubesse dentro daquela lógica. Então, fiquei sedenta por ler, deixar o pensamento livre.

Arrependimentos são convites para novos caminhos?
Passei alguns anos bem amarga por ter perdido tanto tempo. Eu poderia ter usado esse tempo da minha juventude para outra coisa. O auge da minha juventude, imagina! Com o livro, estou tentando fazer essa experiência ser útil. E não só para mim como para outras pessoas.

Do que você tem medo?
Tenho medo do futuro da minha filha, de como o mundo vai estar. Fico pensando se ela vai poder viver uma simples experiência como tomar banho de mar…

 

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.