A entrada (na verdade, o reaparecimento) de Bruno Tolentino no cenário nacional em 1993 certo foi uma das mais turbulentas da nossa memória cultural recente, o que deu origem a muitos desentendimentos seja da parte dos que lhe são hostis seja da parte dos que o admiram, e graças a qual o que realmente importa foi posto no centro das discussões.
Tal qual a maioria, tomei-lhe conhecimento por meio das famosas páginas amarelas da revista Veja em 1996, e a contundência de suas declarações causaram-me tamanho espanto que preventivamente tomei partido dos que lhes foram hostis, como se estivesse me opondo, em solidariedade com os oprimidos da terra, a um aristocrata insensível aos sentimentos nacionais, a alguém que vivia na torre de marfim e, por isso, não sabia do que estava falando. E, sob o impacto daquelas afirmações, elaborava mentalmente, e por meses a fio, respostas contundentes que as refutassem, como o fazia o “homem do subsolo” dostoievskiano que se sentia humilhado pelos seus colegas de repartição contra os quais imaginava discursos triunfantes que lhes revelaria a fatuidade e o vazio de suas vidas.
Essas racionalizações duraram até 1997, quando, passando em frente a uma banca de jornal, vi um exemplar da revista República em cuja capa se estampava o rosto do político Celso Pitta, ora falecido, e da qual se me deixei fisgar pela seguinte chamada: “Quando Deus chama o poeta”, uma entrevista mais longa, que trata mais miudamente dos assuntos discutidos na Veja, mas com acréscimos de dados pessoais tão mirabolantes quanto tocantes, inventados ou não.
Após a leitura dessa entrevista, mais desarmado de prevenções, fui buscar outras informações na internet, e deparei no site Jornal da Poesia com os seguintes versos:
Medusa que este amor entristeceu
como a haste curvada ao meio-dia
em tempos de alta seca…[1]
Diante desses versos, tão intensos e sentidos, cujas imagens são tão apaixonadas quanto é exata a expressão que encontrou, plasticamente tão bem realizados, nos quais uma frase, toda ela um vocativo, num uso genial do enjambement se prolonga, qual uma haste que se curva, nessas três linhas acima reproduzidas, pensei na hora que não posso continuar fingindo que não gosto desse cara e muito menos fingir que não é importante.
E depois de anos de pseudopolêmicas, praticamente intramuros e cuja expressão máxima era o caderno Mais!, da Folha de São Paulo, que expunha a um público maior os esoterismos dos textos acadêmicos, finalmente alguém fala com o coração, e numa linguagem viva, que fala como gente e com um grau de sofistificação a que poucos, por puro preconceito anti-intelectual, recorreriam, uma humanidade rejeitada pelos mesmos acadêmicos que, sob influência dos irmãos Campos, criaram uma imagem cerebral da poesia de João Cabral tão-somente porque este forjou uma teoria a respeito de composição, que a rigor nunca seguiu, ou cuja importância é, quando muito, exagerada, a não ser quando compôs Educação pela pedra, feita para caber nessas teorias e nas teorias anti-liras alimentadas nos departamentos de letras, enfim alguém fala, depois de anos, e aos grandes jornais, de literatura deixando claro que diz respeito a todos, não tão-somente como algo com que tem de lidar para publicar artigos e ganhar pontos e bolsas, como aliás está sugerido logo nas duas primeiras quadras do satírico “A retirada da lacuna”, dos Sapos de ontem”:
Com dó do terceiro mundo
dois irmãos inventam a roda:
pedante vira profundo,
pernóstico entra na moda.
Vai-se abrindo uma lacuna
no cérebro nacional
e a poesia vira aluna
de sapos de manual.[2]
Nestes dois últimos versos, aliás, Tolentino mostra que não se escandaliza com as teorias dos irmãos Campos, nem com a pretensa novidade vanguardófila de sua poesia, que seriam incompreendidas por aqueles que, na imaginação deles, não estão preparados ou maduros para isso. Pelo contrário, não há novidade alguma, estão repetindo a atitude de alguns poetas parnasianos (e a poesia vira aluna/ de sapos de manual) que foram satirizados pelo famoso poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira, cujo nome, de resto, está sugerido na palavra “manual”, bem como, segundo afirmou o próprio Tolentino, “em nada” são “distintos da pior mediocridade morna da dita Geração de 45, à qual o trio [o terceiro é Décio Pignatari] de fato pertence em estilo, mentalidade e fôlego…”[3], e isso é reforçado pelo crítico Luís Dolnikoff:
Conhecia, de Tolentino, seu primeiro livro, Anulação e outros reparos, de cuja primeira edição encontrara um exemplar autografado anos antes, num sebo (SP, Massao Ohno, 1963). Era seu livro de estréia. Pois havia ali alguns poemas verdadeiramente muito bons. Muito melhores, e bem mais modernos, por exemplo, do que seus equivalentes nos livros de estréia de Augusto e de Haroldo, que iniciaram suas carreiras literárias próximos ao retaguardismo da Geração de 45 – enquanto Tolentino vinha do alto modernismo de Drummond, Eliot, Murilo, etc.[4]
De resto, quando um poeta apega-se antes a um programa poético que à realização poética mesma, a consequência natural é haver um envelhecimento do que faz, ou a mais completa irrelevância, não é à-toa que o João Cabral que toca a todos é o de Morte e vida Severina, é o de O rio e é o do Auto do frade, entre outros, ao passo que o já citado Educação pela pedra e a poesia Concreta são apenas estudadas – isso mesmo estudadas não admiradas – em departamento de letras, tal é o grau de seu aspecto programático, a que Tolentino, em versos, chama “…a nota solta/ a pauta em vez da canção…”[5]
Bruno Lúcio Tolentino dá início a sua carreira literária em 1959, ao ganhar o prêmio Revelação Autor, de que participaram como juri Manuel Bandeira, Ledo Ivo, Cassiano Ricardo, entre outros, com o volume Sete claves, publicado em 1963 sob o título Anulação e outros reparos(Massao Ohno), e com número bastante reduzido de páginas, por volta de 100 contra 300 do original, e reeditado com quase a mesma extensão do Sete claves, em 1998, pela editora Topbooks.
Essa estreia, no melhor estilo (e invertendo o famoso verso de Eliot) not with a whimper, but with a bang, foi bastante ruidosa. Alguns concorrentes contestaram a premiação alegando que Tolentino já tinha publicado um livro em 1957, o Infinito sul, o que era o suficiente para não considerá-lo um autor que o prêmio revelara. Como se não bastasse, esse livro era notoriamente um plágio. Tolentino, porém, não abriria mão do prêmio nem que tivesse de confessar a verdade; e, dessa maneira, primeiro informa em juri que o livro foi uma publicação do autor, não comercial, bancada pelo pai para ser distribuído entre os membros da família, e por fim apela a um recurso surpreendente, não apenas admite que o livro é um plágio bem como declara com todas as letras que nenhum dos poemas nele contidos são de sua autoria, o que justificaria o Sete claves como seu primeiro livro de facto e cujos poemas são, de facto, inéditos.[6]
Em 1964, parte para a Europa, num autoexílio de 30 anos, durante os quais publicaria Le Vrai le Vain, em 1971, e About the Hunt, em 1978.
Após ser preso na Inglaterra sob acusação de tráfico de drogas, na década de 80, é deportado para o Brasil e traz na bagagem As horas de Katharina e outras obras que seriam publicadas em seguida, além de fazer declarações polêmicas a um só tempo com humor e contundência há muita não ouvidas, as quais definiram a recepção a sua poesia, que foi acusada, inclusive por Wilson Martins, de ser um tanto classicizante,
Poeta que obedece às convenções tradicionais, com sonetos, poemas descritivos e narrativos, versos regulares, rimas e aliterações, surpreende pouco que encare as vanguardas não só com ceticismo, mas até com hostilidade.[7]
e sem nenhum contato com os sentimentos básicos ou com qualquer coisa ligada ao cotidiano, como se diante de um parnasiano ou de um membro da Geração 45 estivéssemos, erro esse em que incorreram também os que o defendiam, ao tornar a acusação em elogio, na esperança de causar escândalo entre modernófilos, vanguardófilos e outras filias que dão a quem quer que seja acometido por elas a sensação de ser o Super-homem nietzscheano da cultura.
Depois de As horas de Katharina, publica em 1995 Os deuses de hoje (Record), em que dramatiza na sua lírica a história política recente do país, ecoando Cecília Meireles em O romanceiro da Inconfidência, pelo qual dá voz às personagens e ideias de uma época; no mesmo ano, Os sapos de ontem (Diadorim), que retoma por meio do ensaísmo e da poesia satírica a famosa polêmica Tolentino-Campos. É importante ressaltar que não se trata tão-somente de uma obra polêmica, mas de um empreendimento didático que põe no centro das discussões questões fundamentais da tradução poética e da própria poética.
Publica, em 1996, A balada do cárcere (Topbooks), no qual vemos o sentimento amoroso que luta para não perecer na loucura. Em 1998 vem à luz a edição definitiva de seu livro de estreia, Anulação e outros reparos; em 2002, sai o tão esperado O mundo como idéia, pelo qual o autor sistematiza em centenas de líricas o pensamento subjacente a sua opera omnia, a tentação a que todo homem está exposto, de buscar a solução para seus dramas, inclusive o medo da morte, na criação de um mundo melhor, o mundo como idéia, aquele que se controla porque é uma elaboração mental, fingindo ignorar que a realidade pouco se importa com esses delírios, reflexões estas que surgiram, e aqui nos lembra o ensaísta e crítico Martim Vasques da Cunha, da percepção de “que havia um abismo entre o que a poesia representava como a realidade e o que era a própria realidade.”[8]
Por fim, em 2004, o que era explicação no Mundo como idéia, materializa-se numa narrativa constituída por mais de 500 sonetos em A imitação do amanhecer, com uma das narrativas mais inventivas de nossa literatura, o narrador-personagem vê o amante morrer e não aguentando a dor da perda, providencia embalsamar-lhe o corpo com o qual vaga mundo afora, e assim se articula, retomando a poesia dramático-amorosa, com As horas de Katharina em que o amor a Cristo desembaraça os nós das paixões humanas e com A balada do cárcere, em que as mesmas paixões culminam num assassinato por ciúme e na tentativa de livrar-se da tentação demoníaca de se recusar a perceber a verdadeira natureza do ato cometido, quando se apela ao “mundo como idéia.”
Quem expõe o mundo-como-idéia conforme o que realmente é e prefere o real com as suas precariedades ou com sua “rugosidade”, como ouvimos aos cervos no último soneto da “Imitação da música”,[9]
…mas celebremos juntos a sentença
ou a liberdade em vão do ser que pensa
e repensa essa luz que vai morrer.
não pode ser considerado alguém que habita uma torre de marfim, ou alguém que compõe em conformidade com o que se costuma entender como parnasianismo ou como o estilo da Geração 45. Longe de condenar essas escolas, uma vez que nada há de errado com seguir-lhes o estilo, que é modelar, a poesia tolentiniana em nada se lhes aproxima, poesia esta que é mais aliada ao modernismo europeu, principalmente a poesia inglesa, e numa linguagem que, posto seja exuberante, não é ornamental, muito mais próxima à linguagem corrente:
Minha estátua não tossia,
ou nunca tossia em público;
deu-me um susto quando um dia
cobriu a cara e de súbito
sacudiu-se, convulsivo,
sem um som que confessasse
o verdadeiro motivo
do acesso infame…(…)
e isso torna estranho a quem o lê a declaração que reproduzi a algumas linhas de Wilson Martins, então um decano da crítica a quem os modernófilos, mais precisamente hodiernófilos, elegeram como inimigo, que não se distancia em nada do que escreveu o poeta e crítico Dirceu Villa (excelente poeta, diga-se), entusiasta das vanguardas, no prefácio ao livro Dois, de Érico Nogueira:
…foi muito amigo de Bruno Tolentino, poeta brasileiro que ele admira, & que desgostava da poesia moderna & contemporânea no estilo o tempora o mores.[10]
José Guilherme Merquior, por outro lado, em prefácio ao livro de estreia, observa que “rumor” reflete a influência de Cecília.”[11] Mais adiante, na página seguinte, lemos: “eis aqui um poema de um ‘outro’ Bruno Tolentino, e o germe de um Tolentino-Cabral de par com o Tolentino-Drummond que é hoje sua feição superior.” Dito isso, Cecília Meireles, nascida em 1901 e falecida em 1964, não era uma contemporânea de Tolentino? E Drummond, que morreu em 1987, não apenas lhe era contemporâneo bem como é um dos expoentes da poesia moderna que Villa declara com todas as letras que Tolentino “desgosta.”. E quanto a Cabral, cujas teorias – não sua poesia, entenda-se – animaram um número impressionante de confecção de teses e artigos acadêmicos?
Antes de prosseguirmos na discussão, leiamos o que o próprio Tolentino escreveu no posfácio ao mesmo livro:
… desde minha primeira leitura de Drummond (…)no outono de 1955, sua lírica metafísica me havia encurralado. Mas fora com a descoberta de Nudez, à abertura de sua mais recente coletânea entre os poemas de 1959, que me achara convocado pela urgência de dar continuidade à poesia do pensamento como o vate de Itabira a acabava de definir de uma vez por todas.[12]
e no poema “Medalha”, publicado nos Deuses de hoje:
Mas a de Ferreira Gullar,
a revolução que ele fez
e vem fazendo há tantos anos
por todos os que tanto a sonhamos,
essa sim, teve data e tem
a forma e o feitio de quem
entregou ao século e ao homem
o seu sonho, o seu desengano,
a sua vida
e a limpa medalha de um nome.
Que falta a Ferreira Gullar para ser contemporâneo, ter nascido em 1990? Ter persistido no concretismo e no neoconcretismo? A última estância acima reproduzida traz, inclusive, os seguintes versos: “a forma e o feitio de quem/ entregou ao século e ao homem/ o seu sonho, o seu desengano,/ a sua vida…” Dito isso, a questão nunca foi insurgir-se contra poesia tal por ser modernista, contra outra por ser vanguardista, ou como o poeta Érico Nogueira bem assinalou:
…a oposição entre tradicionalismo e vanguarda, classicismo e romantismo, antigos e modernos é uma falsa oposição, porque ou bem o poeta, usando a forma que lhe aprouver, consegue fundir o temporal e o espiritual no seu poema, ou bem o não consegue — e ponto final. Logo, a preferência de Tolentino pelas formas tradicionais é menos “um desejo de contrarreforma no âmbito da modernidade”, como a ela se referiu Marcos Siscar em artigo recente, do que a maneira absolutamente pessoal, e nesse sentido intransferível, que o poeta encontrou para desempenhar o melhor que pudesse o que julga ser o seu mister.[13]
Os poetas, pois, que formaram a poesia tolentiniana são em boa parte poetas do século XX, e cujas cosmovisões ou eram diferentes ou até mesmo contrárias à dele, boa parte ateus ou agnósticos, como Montale, Rainer-Maria Rilke, cujos Sonetos a Orfeu emulou na seção “Elegia obsessiva”, do livro de estreia, não apenas por ser uma sessão apenas de sonetos bem como sua divisão é em duas partes; Yeats, que é uma voz muito presente nos Deuses de hoje, inclusive, na tradução da última parte do poema “A torre”; T. S. Eliot, que serviu de inspiração, junto com Drummond, na composição “O Espectro”, do Mundo como idéia; W. H. Auden, de quem aprendeu a exploração de certo tipo de registro mesclado, que resulta em poemas que tratam de coisas sérias articuladas com imagens inesperadas – vide o famoso “The question”– ,
All of us believe
we were born of a virgin
(for who can imagine
his parents copulating?),
and cases are known
of pregnant Virgins.
But the Question remains:
from where did Christ get
that extra chromosome?
algo caricatas, mas sem tornar o poema uma caricatura ( “para fazer do incauto caminhante/ um sorvete esquecido na brancura// da geladeira por algum gigante.”[14]), um recurso também percebido pelo crítico Alcir Pécora: “O léxico é precioso, a matéria, erudita, e o tom, sentencioso, mas entrecortados por uma riqueza esquisita de registros que admite o ordinário, às vezes, na mesma frase que busca o sublime.”[15]
Recuando mais um pouco, no século XIX, temos Baudelaire como uma das poucas influências mais pretéritas, uma das personagens mais presentes no Mundo como idéia e, em menor grau, Shakespeare cujos motivos foram usados na Balada do cárcere e também no Mundo como idéia em cuja seqüência de sonetos ingleses, “Antevisões da última ante-sala”, percebe-se a presença dos sonetos do Bardo, porém muito mais um diálogo que a absorção de dicção e estilo.
Em língua portuguesa, Fernando Pessoa, presente desde o primeiro livro, principalmente numa imitação, considerada por Merquior a mais bem feita em língua portuguesa, do poema “Hora absurda”, e também de forma igualmente explícita na Balada do cárcere, “Eros a Psiquê”. Os modernistas, Manuel Bandeira, grande fio condutor da dicção das Horas de Katharina, e Drummond, este muito presente em Anulação e outros reparos, que com Pessoa meio que determinou-lhe a feição; Marly de Oliveira, cuja obra Suave pantera fez parte da formação do nosso autor, que inclusive lhe forneceu uma imagem na Balada do cárcere, a do “punhal de sombras”, presente em “Espectro da rosa.”
Dito isso, temos diante de nós um tipo de poesia cujo único empecilho para alcançar um público maior, e me refiro ao leitor contumaz de poesia, são as polêmicas. Como observou mais uma vez Alcir Pécora: “Talvez porque o tenham lido menos do que repudiado as suas declarações polêmicas…”[16] , as quais solidificaram a imagem de um poeta passadista, de um crítico intolerante, inflexível, características essas que são facilmente desmentidas pela simples leitura do que escreveu, seja em verso seja em prosa. Pergunto, pois, com o já citado Alcir Pécora: “Já não passou o tempo em que a intenção do autor era dona da obra e o nervo da crítica?”[17]
Não está superado aquele outro no qual o verso livre e branco era celebrado como ruptura heroica com a literatura ornamental e institucionalizada? Pois agora, ao contrário, ele é o absoluto senhor da situação: ruptura formal, se alguma couber, não passa por aí; ou, se passar, significará, antes, entender a liberdade de dar novo emprego às formas tradicionais do verso e, ao mesmo tempo, as formas mais banais da frase.”[18]
Por outro lado, as polêmicas em si não são um fenômeno indesejável, que prejudicam a cultura. Esta sempre viveu em harmonia com aquelas. É irônico que muitos que a consideram nefasta – e vale lembrar o articulista Marcelo Coelho que se sentiu horrorizado com a polêmica Tolentino-Campos (“O tom do artigo de Tolentino é simplesmente repulsivo. Reúne duas características comuns a certos segmentos intelectuais brasileiros: o gosto pela exibição erudita e o gosto pela cafajestada.”[19]) – , lidam muito bem com as protagonizadas por seus heróis literários ou sempre arranjam um meio para justificar as suas.
O próprio Haroldo de Campos, para elogiar a poesia de Cabral, desvincula-o da Geração 45 ao afirmar, e aqui ele retoma o argumento de José Guilherme Merquior, que a única relação entre ele e a Geração 45 é meramente cronológica,[20] cometendo o erro de julgar esta geração como um movimento homogêneo[21]. Importa recordar também que a poesia Concreta quis conquistar espaço por meio de declarações de guerra, expulsando certo tipo de poesia que lhe não convinha e criando, artificialmente, uma tradição alternativa para justificar seus próprios procedimentos poéticos.
Isso posto, se por um lado as polêmicas parecem inevitáveis, não é impossível a mera curiosidade intelectual, mais ainda, não é impossível deixar de lado os compromissos com grupos que para gostar do poeta A declaram guerra total contra o poeta B. Abra, pois, ao acaso as páginas de algum de seus livros, A balada do cárcere, por exemplo, e verá algo como:
Deixa-te embalar, amigo
como eu me deixo cantar
este acalanto e te digo,
te juro que o verbo amar
só Deus conjuga contigo.
Que mais precisa para admitir para si mesmo que isso é muito bonito, que essa é uma das passagens mais ternas da nossa literatura e que toca a todos, sem planificar os meios, antes explorando com rara musicalidade o contorno da frase, cujos versos parentéticos mantêm-se firmes como se estivessem planando numa grande altura em que a queda é impossível e se curvam para pousar em “só Deus conjuga contigo”? E tudo culminando nesse verso, Deus não aparece como uma entidade abstrata, nem como algo em que se crê, mas uma presença de que se sabe e cuja concretude se representa na força decidida do último verso, e essa concretude, essa certeza, comunicam-se com “Não é bem que prefira o amor de Deus: quem prova/ não tem escolha…”, que saiu das penas de sua cria, a poetisa Katharina. Enquanto, enfim, não lemos os versos de Tolentino, como também já aconteceu a este que vos fala, é fácil fingir que é isso ou aquilo, mas quando lhes pousamos os olhos, temos que admitir para nós mesmos: quem prova não tem escolha.
[1] “Medusa enamorada”, p. 81, A balada do cárcere, Topbooks, 1996.
[2] P. 78, ed. Diadorim.
[3] Mesma obra, p.14
[4] http://prosadeverso.blogspot.com/2013/08/paulo-bruno-leminski-tolentino.html
[5] “Tottenliebe”, p.86, in Os sapos de ontem.
[6] Os pormenores dessa história estão relatados no meu artigo “Das Booty, de Simon Pringle”, revista Nabuco, n°1, 2014, pp. 160-168.
[7] “Versos anacrônicos da militância tardia”, in Prosa & Verso, O Globo(15-06-1996)
[8] https://martimvasques.medium.com/a-travessia-final-2ceafe9658b8
[9] “A imitação da música”, p. 443, O mundo como idéia, ed. Globo, 2002.
[10] “Érico Nogueira, o oposto”, p. 08, in Dois, de Érico Nogueira, É Realizações, 2010.
[11] P. 24, in Anulação e outros reparos, Topbooks, 1998.
[12] P. 287, obra citada.
[13] “Escrito nas estrelas”, p. 21,prefácio à reedição de A balada do cárcere, Record, 2016
[14] “Travessias”, O mundo como idéia
[15] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1105200314.htm
[16] “O livro de horas de Bruno Tolentino”, p. 09 prefácio à reedição de As horas de Katharina, Record, 2010.
[17] Mesma página, mesma obra.
[18] Idem.
[19] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/9/23/ilustrada/18.html
[20] “O Geômetra engajado — João Cabral e a Geração de 45”, in Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária, ed. Perspectiva, pp.77-78.
[21] O poeta Wladimir Saldanha discute o assunto em sua tese de doutorado: http://www.ppglitcult.letras.ufba.br/sites/ppglitcult.letras.ufba.br/files/WLADIMIR%20SALDANHA%20DOS%20SANTOS.pdf