Inquestionável a função formadora da literatura, essa que torna os dias frios sensuais e os quentes prenúncio de bons tempos.
Sobre ela encena Puma, um dos espetáculos mais brilhantes que assisti nos últimos tempos, estrelado por Ricardo Gelli, com texto de Sérgio Mello.
É para escritores.
Ou para apaixonados por literatura, que é “coisa do alto”. Porque é na vida de imaginação que encontramos primeiro as soluções da vida concreta.
Em Puma, aborda-se três gerações de escritores de uma mesma família, que vivem na mesma casa. Três homens, mil feridas.
Nenhum dos laços é de afeto; e, paradoxalmente, é o deslace que une avô, pai e filho — além dos segredos que ficam em aberto e parecem ser o cimento dessa construção familiar apenas com reboco.
Por isso mesmo nada poderia ser mais instigante!
Montado na Oficina Oswald de Andrade, no Bom Retiro, a peça é a prova de que com apenas 60 minutos — e essa duração deveria ser prerrogativa, com raríssimas exceções — é possível apresentar um texto profundo com atuação visceral; destarte, uma experiência para aplaudir de pé e bradar: “Bravo!”
São tantas as excelentes frases que ficamos tentando memorizá-las, até que perdemos a frase seguinte, quem sabe a mais determinante da história — ou de nossa própria história, pois nossos deslaces, com ou sem literatura, demandam igual dedicação para elaboração e compreensão.
Não sem razão um bom contador de histórias tem a veneração de um santo. Ele possui não apenas as palavras, mas também põe a lume seus significados. E esses significados costumam ser tão precisos que passam a ser os significados dos outros.
No limiar das feridas abertas dos personagens, o audacioso e inteligentíssimo politicamente incorreto nos faz sentir em casa — ainda que muitos sejam incapazes de admitir.
Porque é isso, a literatura — como o teatro — é o espaço mais livre que pode haver. Puma chafurda o mais pungente da natureza humana.
Sem rodeios.
Voltando para casa, lembrei-me até de uma frase do português Pedro Mexia: “O eufemismo é inimigo da lucidez.”
O texto destoa da criatividade de nosso tempo e do curso de nossa história… E nada poderia ser mais brilhante!
Se não entramos duas vezes no mesmo rio, como disse Heráclito, não é o mesmo aquele que começa e termina um livro, ou assiste a uma magnífica peça, como Puma.
Depois de uma experiência com a arte, em qualquer linguagem, ainda que tudo permaneça igual fora de nós, acontece em nosso íntimo uma pequena transformação, erupção de sentimentos novos que saltam da escuridão.
E, sim, passamos a ter mais coisas com as quais lidar.
Sou escritora. Compreendi os desvãos do texto de Sérgio Mello. E é verdade: tem que gostar da feiura dessa coisa que é escrever.
Quem escreve, em cada palavra flerta com a morte.
Por isso levo a sério minha vocação. Minha própria pessoa é determinante: escrevo para os que se respeitam.
Em Puma, quem não é escritor, mas ama as belas letras, sabe o refúgio que é o livro, único consenso entre os deuses. E nos salva da família. Quantas, construções apenas com reboco.
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