A seguir, entrevista que Harold Bloom me concedeu, em fins de maio de 2019, algo que guardei como se eu pudesse guardar uma realização para revivê-la só depois. E mais vezes. Depois de pronta. De importância ímpar, Bloom é a coroação de um trabalho e o alívio de uma angústia. Morre com ele minha intenção vingada. O autor de Shakespeare: a invenção do humano, O Cânone Ocidental e o belíssimo Como e por que ler, deixa o amor pelos clássicos, algo que FAUSTO toma como legado.
“Você achou minhas perguntas ruins?”, pergunto, um pouco desapontada, pelas respostas breves. Harold Bloom, em sua idade final, 89, me desmonta:
“Querida, sou um homem muito velho.”
O alívio então vem quando diz que apreciou, sim, as perguntas, do contrário não teria respondido.
É desejo de aprovação de aluna que sonha com a predileção.
Este é Harold Bloom.
“É que tenho respondido perguntas por toda a minha vida.”
De tantos e de si mesmo.
“Além do mais, as respostas breves podem ser as mais esclarecedoras”.
O mais importante crítico literário de nossa era se despede da vida que viveu duas vezes: uma por suas escolhas, outra pelas escolhas dos escritores que amou.
Harold Bloom amou Cervantes, Dante, Dickens, Joyce, Proust, Shakespeare e Tolstói.
Divido com ele que meu contato intenso com os grandes clássicos fez de mim uma pessoa socialmente – muitíssimo – reservada: “Hoje, tenho menos amigos, uma agenda menos intensa, e quase sempre é porque prefiro ficar com Anna Kariênina, com Werther; ou tentando entender os sentimentos de Edmond Dantès em detalhes. Ele me intriga tanto!”
Ele me conta que isso não aconteceu com ele. “Os clássicos me ensinaram sobre a alteridade, sobre a necessidade de estender a mão e ajudar, sempre que eu puder.”
A verdade é que Harold Bloom tratou muito da solidão em seus escritos.
Foram inúmeras as frases que confortaram em dias de incerteza insuportável sobre tudo. E quando é sobre tudo é viver sem chão.
Lembro vividamente das estações de trem em que Harold Bloom entrou em meu coração para dizer que era assim mesmo o caminho dos grandes.
Será que viver tão imersa em páginas era o melhor caminho? Quem, contudo, até hoje, pode dizer que vida é a que vale a pena?
Harold. “Uma das funções da leitura é nos preparar para uma transformação.”
Sempre estou com Bloom no coração: “Lemos para nos encontrar, de um modo mais intenso e críptico do que poderíamos fazê-lo não fosse a leitura.”
E minha Bessa-Luís, tão preciosa, que me ajuda no meu fazer diário. “Quando um escritor tem como leitmotiv a sua solidão, isso significa sempre um encontro superior.”
Penso agora, infantilmente, se Bloom e Bessa podem vir a prosear sobre romances no além-vida. Infantil. A morte infantiliza os que ficam. Voltam as fábulas e os mundos encantados.
Pergunto a Harold Bloom que cena de romance ele reescreveria, se pudesse, porque achou injusta. Para minha imensa surpresa e felicidade: “o suicídio de Anna Kariênina”.
Mas não só, ele completa. Bloom não aceitou todas as mortes em Dostoiévski. Menos ainda o retorno de Isabel Archer a Gilbert Osmond, além do suicídio de Emma Bovary.
Nem ligo para Emma.
Bloom tinha algum problema com a morte? Pergunto-me agora e sem pensar muito.
E qual é a relação entre religião e as grandes mortes na literatura de uma época em que a religião ainda inspirava? Como em Tolstói, sim; e Dostoiévski, evidentemente.
Perguntei a Bloom se ele acreditava que a religião ainda poderia inspirar grandes obras. Ele foi tácito e ácido: “Eu duvido muito.”
Contei que meu coração está no romantismo e que ter me aprofundado em seus tantos nomes e romances e filosofias e melancolias tornou-me uma pessoa com identidade: “desenhei minha árvore genealógica.”
E eu para ele: “O que perde alguém que não tem contato com os grandes…”
E ele para mim: “Quem não tem contato com os grandes clássicos perde tudo.”
Harold Bloom também foi bastante conhecido por brigas que travou, tanto com pessoas como com grupos – marxistas, feministas, multiculturalistas, neoconservadores, só para citar alguns.
Quando, no começo de nossa conversa, apresento a galeria de entrevistados dessa revista, ele fala com muita naturalidade que se um e outro souberam que ele me dará uma entrevista, não voltarão a tratar comigo.
Duvido.
Releio o meu escrito preferido de Bloom, depois de saber dos seus personagens preferidos.
John Falstaff.
Hamlet.
Dom Quixote.
Panurge. Becky Sharp. Clarissa Harlowe.
Lovelace. Pickwick. Hester Prynne. Isabel Archer.
Dorothea Brooke. Leopold Bloom.
Alice.
O meu escrito preferido, e que conto a ele:
“Lemos, intensamente, por várias razões, a maioria das quais conhecidas: porque, na vida real, não temos condições de “conhecer” tantas pessoas com tanta intensidade; porque precisamos nos conhecer melhor; porque necessitamos de conhecimento, não apenas de terceiros e de nós mesmos, mas das coisas da vida. Contudo, o motivo mais autêntico, que nos leva a ler, com seriedade, o cânone tradicional (hoje em dia tão desrespeitado), é a busca de um sofrido prazer. Embora não me considere um apologista da erótica da leitura, creio que a expressão “sofrida de prazer” articule uma plausível definição do Sublime.”
Falamos ainda sobre o poder da literatura de refinar o senso de beleza.
Falamos sobre tecnologias, pesquisas rápidas no Google e milhares de aplicativos que “dizem” nos tornar mais inteligentes. Bloom reage: “Detesto tudo isso.”
Antes de nos despedirmos, volto e disparo: “Existem grandes escritores contemporâneos?”.
Para Harold Bloom: “Todos os grandes estão mortos.”
É verdade.