“Intimidade Indecente” é uma lição de vida

Eliane Giardini e Marcos Caruso foram feitos um para o outro. Em cena. Precisamente, na peça Intimidade Indecente, em cartaz no Teatro Renaissance, em São Paulo. Uma comédia perfeita.

Mas o que seria uma comédia perfeita?

O humor, como o amor, é passível de medição ou seria uma unanimidade? A montagem não é nova, tampouco os dramas expostos pelo casal em crise.

Escrita com perfeição por Leilah Assumpção — repetimos, per-fei-ção —, diante do palco acompanhamos as tentativas de Roberta e Mariano de salvarem a relação, as voltas que não dão certo, velhas mágoas e ressentimentos que vêm à tona, e o mais comovente: por que razão, afinal, desejam tanto ter alguém ao lado?

Desejamos ter alguém ao lado porque não queremos que a vida passe em branco.

Queremos testemunha de nossos orgasmos, de nosso acordar de bom ou mau humor, de nossas ideias geniais, das percepções que temos acerca de miudezas, pois são sempre sobre elas que uma boa ou má relação se sustenta.

Escrevi uma frase em meu primeiro romance, NANA, e durante a peça me lembrei dela, porque me fez pensar “acertei”. Escrevi: “Convivência, coisa séria mais feliz dessa vida.”

Além da perfeição do texto de Leilah Assumpção — é a segunda vez que escrevo isso? —, os dois gigantes da dramaturgia envelhecem diante de nossos olhos, e sem recursos técnicos de maquiagem ou troca de roupas.

Intimidade Indecente, dirigida por Guilherme Leme Garcia, passou por Portugal e Rio de Janeiro e, de volta à cidade, merece casa cheia em todas as sessões. Porque é uma lição de vida.

Não escrevo sobre envelhecer ao lado de alguém no sentido médico-social, mas, sim, no sentido existencial, como uma questão literária, artística, porque dessa forma é possível falar dessa insuficiência — que vemos no corpo, na mente, na pele, nas lembranças — com o perfeito tom de leveza, graça, amor dilacerante e esperança de poder ir até o fim amando alguém. E ao lado desse alguém.

Assistir ao espetáculo Intimidade Indecente é ter uma noção de 90 minutos do que se trata o ciclo vital e como vamos percebendo sua invasão em nossos afetos. Muda-se a perspectiva de tudo na medida em que mudam as estações e chegam os declínios.

A perfeição do texto de Leilah Assumpção — terceira vez — não deixa, contudo, que sejam roubadas as gargalhadas. Casais jovens e velhos se enxergam na montagem porque teorias do senso comum não são comuns sem razão.

A mulher, em sua representação mais clássica, a doméstica e feminina, cai por terra e redescobre seu corpo, um outro lado em que pode habitar numa nova lógica e tempo.

O homem, o típico masculino ancestral, que ainda se apoia na noção de atividade, mente o tempo todo para não assumir que perdeu o ritmo.

Ambos, porém, assistem ao desgaste da máquina-corpo.

O que fica de uma intimidade indecente? A acidez feminina que Giardini interpreta com exuberância, o humor trocista que reconheci em minha mãe, quando já não conseguia segurar mais a xícara de café com leite, mas não perdia a deixa de zombar de meu pai, que mal enxergava onde estava o pote de bolachas.

Fica também a sensibilidade que o homem por toda a vida tentou esconder e, com sorte, só teve coragem de mostrar apenas para uma única mulher.

A mulher esquece.

O homem nunca esquece.

Final arrebatador.

Intimidade Indecente é uma lição de vida em que rimos descontroladamente ante a indecência da impotência.

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.