Literatura e oração em Flannery O’Connor

Uma criadora de pavões.

Sim, Flannery O’Connor foi uma dedicada criadora de pavões.

Não sem razão uma bela ilustração da ave vaidosa foi criada por Daniel Justi para ilustrar as capas de Diário de Oração e Mistério e Costumes, um dos mais recentes lançamentos da É Realizações.

Sim, as capas.

As obras da renomada escritora americana, considerada um dos grandes nomes da literatura do século XX, estão divididas, compondo, assim, uma dupla.

E que dupla! Em todos os sentidos.

É impossível parar de ler tanto um quanto o outro. O apuro no trabalho desse duo é sensorial.

Do que se trata o primeiro livro é óbvio.

E é muito interessante conhecer Flannery em seu mais íntimo, os assuntos que dividia apenas com Deus: seus sentimentos mais humanos, além do que pensava acerca de seu ofício, ser romancista.

O que conduz ao segundo livro, Mistério e Costumes, que é efusivamente magnífico! Ah, tirei-me dos cuidados de ser contida, realmente estou apaixonada por esse livro.

Para amantes da literatura como eu está sendo uma aula, uma grande oportunidade conhecer o que Flannery O’Connor pensava a respeito da literatura em termos mais conceituais — afinal, a cultura é inseparável da educação, e no sentido mais profundo, que se trata do aprendizado de uma linguagem, lembrando Christopher Dawson.

Como uma leitura encaminha para a próxima leitura, inevitavelmente partirei para a biografia escrita por Jonathan Rogers: A Implacável Velocidade da Misericórdia – A Biografia Espiritual de Flannery O’Connor.

Um dos espantos que envolveu a vida da escritora foi sua própria morte.

Dessas coisas que não se explicam — principalmente com pessoas talentosas —, Flannery O’Connor morreu aos 39 anos, devido a complicações causadas por lúpus.

Nascida em 1925, em Savannah, Geórgia, Mary Flannery O’Connor, residiu por quase toda a sua vida no sul dos Estados Unidos, por isso sua literatura foi rotulada como grotesca.

Ou, em termos mais amenos, southern gothic ou “gótico sulista”.

Flannery O’Connor graduou-se em Ciências Sociais e começou sua carreira literária durante o mestrado em Escrita Criativa, que realizou em Iowa.

Diário de Oração conta com tradução e prefácio de Hugo Langone. Destaco alguns trechos desse primeiro livro:

O inferno parece muito mais factível à minha cabeça fraca do que o céu.

Deus querido, ando tão desanimada com minha obra. Tenho, isto é, a sensação de desânimo. Percebo que não sei o que percebo.

Deus querido, não quero ter inventado minha fé a fim de satisfazer a minha fraqueza. Não quero ter criado Deus à minha imagem, como costumam dizer tanto por aí. Por favor, meu Senhor, dá-me a graça necessária, e por favor não permitas que seja tão difícil consegui-la quanto Kafka dá a entender.

Talvez a esperança se realize se em contraste com o desespero.

Deus deve estar em toda a minha obra. Tenho lido Bernanos. É maravilhoso demais. Chegarei a saber um dia o que quer que seja?

Não há ninguém que me possa ensinar a rezar?

Não pode ser ateu quem não conhece todas as coisas. Só Deus é ateu. O demônio é o maior dos crentes e tem lá seus motivos.

Os deleites intelectuais e artísticos que Deus nos dá são visões, e como visões nós pagamos por elas; e a sede de visão não necessariamente carrega consigo a sede do sofrimento que a acompanha. Ao olhar para trás vejo que não sofri meu quinhão, só o suficiente para o chamar de sofrimento, mas há um imenso saldo devedor. Deus querido manda-me por favor a Tua Graça.

Devo deixar por escrito que serei artista. Não no sentido de arrebique estético, mas no da destreza estética; do contrário sentirei continuamente minha solidão — como esta de hoje.

Quero ser a melhor artista que me é possível ser, sob Deus.

Quanto ao livro Mistério e Costumes, traduzido por William Campos da Cruz, ele está mais sublinhado do que o coração de uma mulher.

Flannery O’Connor escreve:

Minha busca — pelo que quer que fosse — terminou com os pavões. O instinto, não o conhecimento, levou-me até eles. Eu nunca tinha visto ou ouvido um. Embora tivesse um redil de faisões e um de codornas, um bando de perus, dezessete gansos, uma tribo de patos-reais, três galos japoneses, dois galos poloneses e vários frangos de um cruzamento entre esses últimos e a galinha vermelha, sentia falta de alguma coisa. Sabia que o pavão era o pássaro de Hera, a esposa de Zeus, mas desde aquela época ele provavelmente desceu ao mundo — os classificados do mercado da Flórida anunciavam um pavão da Ásia de 3 anos ao preço de sessenta dólares o casal. Li tranquilamente esses anúncios por alguns anos, até que um dia fui fisgada, circulei um anúncio nos classificados e entreguei-o à minha mãe. O anúncio era de um pavão macho e uma fêmea com quatro pavõezinhos. “Vou comprar estes”, eu disse.

Somente se estivermos seguros de nossas crenças poderemos ver o lado cômico do universo.

Quanto mais aprendemos sobre nós mesmos, mais fundo no desconhecido empurramos as fronteiras da ficção.

O escritor pode escolher sobre o que escrever, mas não pode escolher aquilo a que é capaz de dar vida.

O escritor sério sempre toma o vício, na natureza humana, como seu ponto de partida, geralmente o vício numa personagem admirável em outros aspectos.

O drama geralmente se baseia no fundamento do pecado original, quer o escritor pense em termos teológicos, quer não. Então também se supõe que qualquer personagem num romance sério detém uma carga de sentido maior do que ele mesmo.

O romancista não escreve sobre pessoas no vácuo; escreve sobre pessoas em um mundo em que há o mistério geral da incompletude e a tragédia particular de nossos tempos a ser demonstrada, e o romancista tenta transmitir, em forma de livro, uma experiência total da natureza humana de qualquer tempo.

Em seu curto tempo de vida, Flannery O’Connor assinou apenas dois romances: O Sangue Sábio, publicado em 1952; e O Céu é dos Violentos, publicado em 1960.

Também desejo falar sobre ambos em breve — “em breve” é no tempo dos românticos.

Ah, a literatura! Inquestionável sua função formadora.

Porque é na vida de imaginação que encontramos primeiro as soluções da vida concreta. Nos livros estão os sonhos que queremos viver.

Enquanto eu andava para lá e para cá com esse duo, minha vida como escritora acontecia, e foi como estar acompanhada pelo espírito da própria O’Connor, porque não me senti sozinha.

Sendo o espaço mais livre que pode haver, Flannery O’Connor prova, em ambos os livros, que o tom pejorativo que tinge a categoria “literatura conservadora” é um equívoco.

Pode haver criatividade — e é um dever tentar expandir ao máximo os limites de nossa humanidade na hora de escrever.

Nas palavras dos imortais, como Flannery, podemos nos largar, em repouso e contemplação.

Duo recomendadíssimo!
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.