Lobão: um clássico que pode se reconhecer como tal

É só olhando para trás e em perspectiva histórica, que um clássico se pode conhecer como tal”, escreveu T.S. Eliot em seu ensaio “O que é um clássico”.

Rememorando a cena musical e cultural do Brasil dos últimos 50 anos, digo de forma peremptória e sem receio de objeções que, sim, Lobão, vulgo de João Luiz Woerdenbag Filho, imortalizou sua obra como um clássico.

Um clássico, ainda de acordo com Eliot, “deve ser a obra de um espírito que atingiu a maturidade”. De reinvenção em reinvenção, Lobão alcançou a maturidade artística, ao se desprender, ao longo de sua trajetória, de todos os rótulos que lhe foram atribuídos.

O clássico deve, dentro das suas limitações formais, exprimir o máximo possível de toda a gama de sentimento que representa o caráter do povo que fala essa língua. Representará este no seu melhor, e exercerá também a maior atração: no meio do povo a que pertence, encontrará resposta entre todas as classes e condições de homens.”

Com diversos hits ao longo das décadas, sobretudo nos anos 80, devido à invasão do rock e do pop rock nas rádios brasileiras, Lobão passou a fazer parte do imaginário musical. “Me Chama”, “Rádio Blá”, “Vida Louca Vida”, “Vida Bandida”, “Por Tudo o que For”, “Noite e Dia”, dentre outras, tornaram-se populares ao ultrapassarem fronteiras delimitadas por gêneros musicais.

Para além das paradas de sucesso, a linguagem central, o rock ’n’ roll, expressa o universalismo da obra de Lobão, visto que o gênero mencionado se caracteriza pelo cosmopolitismo em suas diversas facetas.

50 Anos de Vida Bandida

Carioca, nascido no ano de 1957, Lobão é amado por uns, odiado por outros, mas é quase impossível ser indiferente à figura desse iconoclasta artista, uma das vozes mais autênticas do rock nacional.

Salvo por seu talento, João Luiz vivenciou tragédias pessoais que sucumbiriam o mais forte dos homens, mas Lobão foi construindo, através da sua arte, um modo ímpar de se manifestar, seja compondo, escrevendo, emitindo opiniões ou provocando.

O artista tem que provocar“, diz o próprio.

E é isso o que ele faz há 50 anos, desde o Vímana, banda setentista de rock progressivo. Aos 16 anos, em sua audição a contragosto, “baixou” a bateria da Mangueira e tocou um samba para aqueles roqueiros cabeludos. Lulu, Ritchie e cia entraram na onda, e assim começava a carreira de um dos maiores músicos brasileiros de todos os tempos.

Com a turnê “50 Anos de Vida Bandida”, capitaneada pela produtora Top Link Music, do empresário Paulo Baron, Lobão celebra meio século de estrada com um setlist muito bem selecionado, que passa por todas as fases de sua extensa e intensa trajetória, permeada por hits e canções consideradas “Lado B” — as preferidas desse que vos escreve.

Em show realizado no dia 26 de abril na capital paulista, tanto os conhecedores dos maiores sucessos quanto os fãs mais assíduos saíram satisfeitos da casa de shows Audio.

Com um formato de power trio — Lobão nos vocais e na guitarra; Guto Passos no baixo e nos backing vocals; Armando Cardoso na bateria —, a apresentação brindou os espectadores como um som potente, sem deixar vácuos.

Baterista de formação, Lobão tornou-se um exímio guitarrista, o que pode ser observado a partir do álbum Canções Dentro da Noite Escura, de 2005. E foi com a faixa “Tranquilo”, desse disco, que o trio começou a apresentação.

Em entrevistas, Lobão já revelou algumas vezes que Nietzsche está entre as personalidades que o formaram enquanto artista. “Esfinge de Estilhaços”, do álbum Cuidado!, de 1988, segunda música executada no show de São Paulo, é uma verdadeira ode nietzschiana. “Me desmorono, pela vontade, pela potência, e me transformo numa esfinge de estilhaços”.

“A Balada do Inimigo”, do álbum Canções Dentro da Noite Escura, tocada na sequência, além de uma letra com a típica assinatura do Lobão — densa, sombria e pungente —, possui uma musicalidade poderosa, cujo ápice é o solo final. Se fosse materializado, seria a lágrima de um anjo caído. “Pra mim, o mundo, é só mais um quarto escuro, e a devastação da vida, uma declaração de amor”.

No melhor estilo rock and roll, “Canos Silenciosos”, a quarta da noite, foi lançada no álbum O Rock Errou, de 1986, seguida pela faixa-título do mesmo disco.

Depois, foram executadas duas do álbum Noite, de 1998: “Samba da Caixa Preta” e “A Noite”. Na primeira, o carioca Lobão desfaz a imagem lisonjeira da cidade do Rio de Janeiro.

Aqui o narciso é carioca, não morre afogado, mergulha, dá um jeito e se transforma em peixe ornamental […] Maravilhosa precariedade na permanência”.

“O Inferno é Fogo”, de um disco homônimo lançado em 1991, e “Baby Lonest”, d’O Rock Errou, também foram executadas antes da primeira participação especial do show.

Essa ficou por conta do lendário guitarrista da Pompeia, Luiz Sérgio Carlini, de Rita Lee e Tutti Frutti, que entrou no palco para tocar “Ovelha Negra”, cujo solo antológico é de sua autoria.

Na autobiografia “50 Anos a Mil”, Lobão conta como conheceu Carlini na noite paulistana.

À noite, o Lulu me convidou pra dar um rolé pela cidade… Nos dirigimos diretamente para o Piolin… todo mundo frequentava o Piolin, e naquela noite, eis que nos deparamos com a figura lendária, e única, Luiz Sérgio Carlini! A Rita Lee e o Tutti Frutti tinham acabado de lançar o Fruto Proibido, ‘Ovelha negra’ era o grande hit nas rádios e o solo mais famoso do roquenrou local fora concebido e executado por ele…
ali… na minha frente, terminando uma pizza!

E um dos momentos mais icônicos do show na Audio foi justamente o solo de “Ovelha Negra” executado por Carlini, com a ovelha negra da música brasileira, Lobão, reverenciando a cena com o mesmo deslumbre de quando tinha 16 anos.

Depois, Big Wolf e sua alcateia tocaram “Matou a Família e Foi ao Cinema”, de seu disco de 1991.

A próxima participação especial da noite, a banda Jota Quest, entrou no palco na sequência, representada por Rogério Flausino, Marco Túlio e PJ.

“Décadénce Avec Elégance”, do compacto de 1985, ainda com a formação d’Os Ronaldos, ganhou uma roupagem mais pop com o conjunto mineiro, “a personificação da alegria”, nas palavras de João Luiz.

A partir daí, a apresentação emplacou uma sequência primorosa, com a indefectível assinatura lobônica. A começar por “Sozinha Minha”, do álbum Noite:Então me abraça e esquece todo o luto que esse mundo tem…”

Em seguida veio a minha preferida: “El Desdichado”, de A Vida é Doce”, disco de 1999, feita em homenagem a Alcir Explosão, assassinado em junho de 1998.

Símbolo da escola de samba Mangueira, Alcir Explosão foi parceiro musical de Lobão nos discos Cuidado! e Sob o Sol de Parador, de 1988 e 1989, respectivamente.

Inspirado no poema homônimo do escritor francês Gerárd de Nerval, a letra e a melodia exalam fúria e dramaticidade, naquela que, talvez, seja a canção mais autobiográfica do músico, a despeito de ser um tributo ao ex-diretor da verde e rosa.

Eu sou a explosão, o exu, o anjo, o rei, o samba-sem-canção, o soberano, de toda a alegria que existia…Eu sou nada e é isso que me convém, eu sou o sub do mundo e o que será que me detém…

Uma sequência de três músicas do A Vida é Doce deu continuidade a essa parte do show: “Mais Uma Vez” — “às vezes é melhor sorrir, imaginar, às vezes é melhor não insistir e deixar rolar, e tratar as sombras com ternura, o medo com ternura e esperar” —; a faixa-título do disco; e “Vou te Levar”, composta para Regina, sua esposa, uma legítima canção de amor feita em 15 minutos.

A parte final do show foi dedicada a diversos hits. “Por Tudo o que For”, do álbum Cuidado!; “Noite e Dia”, do disco O Rock Errou, composta com Júlio Barroso e gravada por Marina Lima.

“Me chama”, o maior hit da carreira de Lobão, inserida em Ronaldo Foi pra Guerra”, disco de 1984, gravado em parceria com Os Ronaldos, foi cantada em uníssono pelo público.

“Vida Louca Vida” — imortalizada na voz de Cazuza —, “Vida Bandida” e “Rádio Blá” — essa última com participação de Carlini e Jota Quest — vieram em seguida, todas do álbum Vida Bandida, de 1987.

“Revanche”, d’O Rock Errou, parece ter voltado de vez ao setlist de Lobão. O músico ficou anos sem executá-la ao vivo, por considerá-la um tanto quanto comiserada, mas, desde a partida de Elza Soares, em 2022, que participa desse disco de 1986 na faixa “A Voz da Razão”, Lobão reintroduziu-a em seu repertório.

Eu não quero mais nenhuma chance, eu não quero mais revanche“… Com um solo de baixo primoroso, executado com perfeição por Guto Passos, “Revanche” homenageia Elza e presenteia o público.

A penúltima música do show é a faixa-título do primeiro trabalho “solo” de Lobão, “Cena de Cinema”, de 1982.

Para finalizar a festa na floresta, “Corações Psicodélicos”, composta junto com Júlio Barroso e inserida no Ronaldo Foi pra Guerra.

Sim, o velho lobo continua uivando alto, com muita fúria e potência.
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Túlio França Escrito por:

Escritor. Todo o resto deriva disso.