Maurício G. Righi: “Dawson ainda é um autor para o futuro”

O Sábio de Malvern Hills é o mais recente livro do historiador brasileiro Maurício G. Righi. Um belíssimo livro, sublinhamos. No decorrer da leitura, não encontramos apenas uma análise bem alicerçada acerca de um pensador de envergadura como Christopher Dawson; encontramos, também, uma construção narrativa cujas palavras vão se distribuindo pela memória e nossa própria imaginação parece ser colocada em exercício para uma apuradíssima refinação. A publicação tem consistência, profundidade, energia emocional, estilo e a presença do autor. Por tudo isso, Righi é o convidado da vez, desta casa FAUSTO. Não para um recrutamento de novos leitores de Dawson, embora, talvez, mais do que nunca, nossa sociedade o necessite, além de todos os predicados atribuídos à obra.

Christopher Dawson.

FAUSTO – Christopher Dawson é um autor para o leitor geral?
Maurício G. Righi: Bom, creio que realmente não saberia mais avaliar, em nosso mundo repleto de tribos com suas identidades e idiossincrasias em litígio cósmico, um mundo repleto de exibições gratuitas de virtude, repleto de neocensores em ambos os lados do espectro ideológico, o que seria o “leitor geral”. Ao se lançar como autor, Dawson pretendia alcançar e ser lido pelas pessoas que liam o Daily Mail, o que é evidentemente uma completa impossibilidade, mesmo sabendo que ele fez muito sucesso em sua época, e cujo público leitor médio era muitíssimo mais letrado e instruído que o atual. Mas, descontando a minha chatice usual, entendo o sentido maior de sua pergunta, e penso que Dawson, ainda que do alto de sua erudição e de suas reflexões bastante elaboradas e acadêmicas, é um autor absolutamente acessível a qualquer um que esteja aberto ao pensamento historicamente fundamentado, que nos liberta de aprisionamentos ideológicos e de lugares-comuns rebaixados no pensamento massificado.

Por quais razões o leitor geral deveria começar a ler sua obra?
Pelas razões acima descritas. Mas há algo mais – em seu estilo sumamente elegante e inspirado, Dawson nos conduz pela mão e nos faz viajar no tempo, mostrando-nos as belezas incontáveis das mais distintas civilizações, povos e culturas. As exposições históricas que faz, além de serem altamente elucidativas, convidam o leitor a contemplar a beleza da vida em suas realizações humanas.

Seu livro O Sábio de Malvern Hills é uma belíssima forma de entrar no pensamento de Christopher Dawson, seu intuito foi também romântico, de priorizar o encanto e o preciosismo em meio a tantos livros rasos e com finalidades puramente comerciais?
Sim, foi. Não basta ser um bom historiador, é preciso dar beleza literária àquilo que se expõe como reflexão histórica, e há uma boa quantidade de historiadores e de cientistas sociais que souberam oferecer boas análises em linguagem evocativa, como no caso notório de nosso Gilberto Freyre. Dois dos autores que mais me são caros, Dawson e Girard, seguiram a mesma linha, ainda que seus estilos sejam muito diferentes entre si! Você não precisa ser um romântico para se interessar, ao mesmo tempo, por arte e ciência.

É possível dizer que a “recusa” de Dawson de revelar o horror de sua época, escolhendo outros caminhos, seria um traço do romantismo que o caracteriza? Tirar “lascas” de encanto…
Mas ele não se recusou a revelar o horror de sua época, pelo contrário, dedicou boa parte de sua historiografia a revelá-lo integralmente, só que ele o fez pela via inversa, ou seja, em vez de expor as entranhas dos maus feitos humanos, sua historiografia põe foco nas realizações humanas, em suas sólidas construções na edificação de uma civilização, fazendo-nos contemplar o bom para que mais rapidamente nos afastemos do mau. Dawson sofreu demais com o ataque bárbaro que os totalitarismos impuseram sobre a sua época, esmagando sistematicamente povos, pessoas e culturas. Todo o seu esforço historiográfico busca justamente compreender como isso se deu, como foi possível deixar de lado tantos avanços e realizações civilizacionais para se enveredar em projetos políticos absolutamente cruéis e desumanos. Mas, você tem razão, a sua historiografia aponta para a luz, em vez de chafurdar-se na lama das violências humanas, descrevendo-a em detalhes. Em meu livro, procurei mostrar essa escolha.

Essa é uma postura estética sui generis de Dawson ou usada para se comunicar com seu público?
Penso que Dawson fosse uma alma doce, gentil, absolutamente fascinada pela natureza, mas, ao mesmo tempo, muito arguta, altamente exigente e dada a longas ruminações reflexivas. O seu estilo é resultado desse composto. Ele foi um romântico, sem dúvida, mas de modo absolutamente sui generis, o que somente reforça o seu romantismo. Era um homem de ciência, e como! Mas nunca fez ciência friamente. Queria reeducar as pessoas para que voltassem a enxergar a beleza da vida.

É uma das grandes qualidades da historiografia de Dawson compreender e relatar os mundos distintos em seus próprios termos — e não como uma “extensão do tempo chapada”, como reforça em O Sábio de Malvern Hills?
Sim, perfeitamente, ele via a história como grandes complexos ou campos culturais, em que cada povo teria o seu próprio sonho de autorrealização, e que isso estaria expresso em sua arte, em sua religiosidade, em suas ocupações. Todavia, esses “grandes sonhos” coletivos se intercomunicam na história, os povos se mesclam, interpenetrando-se, criando assim extensas e intricadas dinâmicas culturais. Posso arriscar que ele via a história como uma grande dança cósmica, cujo sentido seria a integração da humanidade em campos sociais mais satisfatórios. Ainda estamos longe disso, é claro. Dawson ainda é um autor para o futuro, não tenho dúvida.

Essa postura é de humildade, respeito, grandeza espiritual ou tudo isso? Ou nada disso?
É tudo isso, certamente. Ao contrário dos vícios, que se isolam em sua obsessão fechada, e de fato coisas como preguiça e ira ou luxúria e gula não se ajudam mutuamente, as virtudes se retroalimentam. Sim, temos aí uma espiral virtuosa, da qual ele participava como homem espiritualmente ativo, ainda que não fosse um santo ou coisa semelhante, como alguns de seus leitores tendem a caracterizá-lo. Mas, de fato, por vezes, ao ler e reler seus escritos (e são tantos), captando sutilezas e coisas subliminares, me espantava com a integridade dele, com sua retidão intelectual. Às vezes, isso me parecia uma coisa herdade – de sua família, de seu meio social e educação –, mas, por outras, me parecia algo muito pessoal. Ainda não tenho resposta para isso.

Para o autor galês, religião e cultura são indissociáveis?
São completa e irrevogavelmente indissociáveis, em sua base. Mas é possível, sim, que degenerem respectivamente em religião política e distopia. E bem sabemos disso!

Uma busca de uma interioridade profunda é sempre religiosa?
Essa é uma pergunta dificílima, porque vai depender do que se entende por religião, termo esse absolutamente polissêmico. Pessoalmente eu diria que não, mas porque tenho um entendimento muito próprio e antropologicamente fundamentado sobre “religião”. Dawson talvez dissesse que sim, uma vez que o entendimento dele sobre religião é mais histórico-teológico. Agora, algo que ambos compartilharíamos: uma interioridade que se faça realmente profunda encontrará, inevitavelmente, algo que ultrapasse o “eu”, tanto o pessoal quanto o social, uma religiosidade realmente profunda ou é mística ou não é nada.

Como autor de O Sábio de Malvern Hills, em sua forma de ver o mundo também há elementos românticos?
É claro que há! Uma vez colocado do mundo, não se escapa mais do romantismo, e o mesmo vale para outras coisas, como o historicismo, por exemplo. Mas é preciso dosar essas coisas, porque podem ser, a depender do uso, psicologicamente tóxicas. Por exemplo, o ultrarromantismo de Nietzsche é – na minha opinião – altamente tóxico, e assim é exatamente por ser brilhante, mas é um brilho que nos insinua abismos perigosos. Nem todo mundo está habilitado a navegar nessas aguas. O próprio Nietzsche não estava! Pessoalmente, aprecio demais a solitude dos românticos, sua reclusão reflexiva, seu temperamento dado à contemplação das liminaridades. Sinto-me em casa com essas coisas e Dawson também se sentia. Mas isso não é tudo, e os exageros dramáticos da personalidade romântica são quase sempre sacrificiais, porque mórbidos, como naqueles animes japoneses em que todos têm de ser sumamente infelizes e melancólicos, o herói que sempre termina sozinho num universo frio e indiferente, na contemplação erótica de seu próprio sofrimento. Graças a Deus, meu lado cristão, que também é forte, não me deixa cair nessas tolices. Dawson igualmente, com a diferença de que foi um gênio, matizava o seu romantismo com fortes elementos cristãos, ou seja voltados aos aspectos luminosos e excelsos da vida.
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.