Pelo menos uma vez ao dia penso em Meursault.
Assim, quando vi o anúncio do espetáculo O Estrangeiro, estrelado por Guilherme Leme, quis assisti-lo.
Li duas vezes o romance de Albert Camus, de 1957. Na duas, tomei uma posição: sim, eu absolveria Meursault.
Mas eu queria estar diante de Leme, porque ele talvez me mostrasse alguma nuance que perdi nas letras, pois posso tê-lo lido com monotonia ou incomodada com a temperatura do dia.
Nem o romance, tampouco a peça, são para os que preferem a superfície — da ficção e da realidade. O livro nos causa inquietação e nos faz participar da vida.
Já na peça, dirigida por Vera Holtz, a ausência de artifícios acentua a tensão, porque no teatro não podemos ceder às comichões.
No palco, somente um jogo de luz poderoso, desenhado por Aline Santini, e um banco, dão cargo de apresentar o protagonista para que possamos compreender seus desenganos.
Vale o adendo: o figurino impecável é assinado por João Pimenta.
Absolveria Meursault porque conheço o tanto faz. Já imaginei, muitas vezes, a notícia de que a mãe morreu. À noite, na escuridão de minha mocidade, sonhei ser Marie.
Ser mulher, em miúdos.
Meus desejos também eram imediatos, curtos, simplórios — e estéticos.
Poder morar no pensamento de alguém, ser lembrada por um vestido e por minha pele marcada pelo Sol. Sonhava, sobretudo, com a possibilidade de pouca coisa valer mais do que um fio do meu cabelo.
A indiferença de minha mãe me deu a capacidade do absurdo, aplicado no sentido comum — e de conhecer essa indiferença que sente o personagem, um tipo de silêncio interior que, inclusive, funciona como blindagem.
Nada sabemos de sua mãe, se foi boa ou má, sabemos apenas que o sol, na hora do crime, e o calor na praia, que fazia escorrer o suor em suas sobrancelhas, o lembrou da morte de sua mãe.
Hoje se diz “gatilhos”.
Soa-me curioso que Meursault fosse indiferente às pessoas — até à Marie —, mas que não o fosse a temperaturas, falatórios, às gentes medíocres que tinham necessidade de dialogar sobre suas convicções.
Não sou filósofa. Meço a todos pela régua dos meus convivas. Então, faz sentido que Meursault só tenha atirado porque o Sol e os sintomas do luto o incomodaram a ponto de reagir instintivamente.
Absolveria Meursault porque me reconheço nessa agonia de uma falta de inteligência sociável. Suas satisfações eram imediatas, curtas, simplórias — e estéticas.
Meursault não julgava qualquer ideia.
Não fugia de suas obrigações, até lhe ofereceram um cargo em Paris!
Ele cumpriu o protocolo da vida e da morte.
Guilherme Leme tem um rosto árido, o que deu mais ênfase ao personagem impermeável pelo romantismo e pela mística.
Leme não apresenta um homem deformado, apenas um homem que não queria fazer reformas no mundo.
Agora que escrevo, não sei se Meursault era tão indiferente. Talvez — só talvez —, não quisesse enobrecer a mania do mundo de justificar que temos significado.
Absolveria Meursault, mas continuo nas causas do amor.
Vulcânica, impaciente, esmiúço tudo. Ouso, desembaraço, estou longe de ser aquela que a tudo se acostuma. Minha sensação de ser estrangeira é justamente extrema à de Meursault. Eu poderia ter matado pelo Sol nos meus olhos e pela lembrança da mãe, mas meus olhos nunca cessariam de marejar.
Calma!
Meursault se recusa a olhar para Marie na hora da sentença! Então ele pode ter sido tentado, sim, à mania do significado.
No jogo de luz que abre as camadas acres do personagem, a montagem de O Estrangeiro revela muitíssimo.
Lá vou eu desempoeirar o exemplar de O Estrangeiro, a conselho de Italo Calvino: “Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.”
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