“A morte é a cerimônia do medo”.
A frase é do espetáculo O Veneno do Teatro, estrelado pelo renomado Osmar Prado, acompanhado pelo talentoso Maurício Machado, e que se encontra atualmente em cartaz no Sesc Santana, zona norte de São Paulo.
A peça trata de um experimento do Marquês, interpretado por Osmar, um aristocrata egocêntrico. O Marquês então convida o ator Gabriel de Beaumont, personagem de Maurício, para ser o cávia.
Ou cultivamos orquídeas ou seres humanos.
Tudo acontece em torno de uma peça escrita pelo Marquês, peça essa inspirada na morte de Sócrates, e ele deseja que o ator viva, do jeito mais realista possível, a própria morte.
Como seria possível, se o teatro é mera interpretação?
Como seria possível interpretar algo do qual não sabemos as sensações, os sentimentos, a semântica?
Quem abandonamos quando morremos?
Por melhor que seja um ator – Osmar, unanimidade! –, ele não pode interpretar um sentimento tão último como a morte, porque ela própria é um mistério, além de ser uma realidade para a qual nutrimos uma resistência natural.
“Não sabemos renunciar a nada”, escreve Freud.
A genialidade do roteiro é justamente o fato de não ser possível representar a morte de si mesmo uma vez que nunca se viveu esse momento.
E o ator ainda tem uma espécie de revolta contra a morte, por isso não sabe viver sem ser tantos.
Eu, que escrevo, sei a sorte de saber transpor o espaço e o tempo e a teia que me faz indivíduo, e passo a ser outros.
“Pequeno deus, criador de um pequeno mundo”, escreve Manguel.
Quem abandonarei quando morrer?
Ernest Becker, em seu A Negação da Morte, escreve que o medo da morte tem um papel de destaque em nossa configuração psicológica.
A troca entre os atores é muito boa, principalmente porque é fácil perceber quando Osmar Prado improvisa ou revela centelhas de si mesmo, essa lenda da teledramaturgia brasileira, agora no teatro.
Logo, estar ali na plateia é estar em duas experiências diferentes, por isso os encantos se misturam.
Então pode haver, sim, duas verdades, e a morte pode ser mais do que o medo.
O carisma de Osmar Prado é inigualável. Seu personagem em O Veneno do Teatro é dúbio e possui uma fina camada de humor irônico e idiossincrático. Sua paixão pelo teatro o leva ao limite da razão.
O Marquês cita Diderot, Racine, Sócrates, mas não cita Becker numa colocação que poderia descrevê-lo.
Sim, descrever ele mesmo, o próprio Marquês!
Tema delicado, sei, o narcisismo tem sua parcela na evolução do mundo.
Essa premissa nem é de Becker. Aristóteles chegou a escrever uma fria sentença a respeito: “sorte é quando o sujeito ao seu lado é atingido pela flecha.”
Sem certa dose de narcisismo – para testar teorias e hipóteses – quem seria o primeiro a se oferecer para uma trincheira?
Para Freud, em suas próprias palavras: “No fundo do coração, o indivíduo não acha que vai morrer, apenas sente pena daquele que está ao seu lado.”
Mas chegam as contingências e tudo cai por terra. Nossa liberdade é apenas estética.
A explicação freudiana é que o inconsciente não conhece a morte – menos ainda o tempo. Ele escreve: “Nos seus recessos orgânicos fisioquímicos mais íntimos, o homem se sente imortal.”
O Marquês revela essa postura, mas o ator não fica atrás em sua vaidade, que no começo da peça lembra muitíssimo Dorian Gray, de Wilde.
A atuação de Maurício vai crescendo numa espantosa velocidade e robustez, superando a do próprio Osmar. Entendemos, nesse momento, a escolha do parceiro. Dois gigantes, cada um a seu tempo.
De um caricato ator vaidoso, Maurício leva seu Gabriel para uma interpretação tão realista que vamos suando junto com ele, e nos percebemos encharcados por dentro.
Pensar a morte, mesmo que por meio da ficção, não é fácil.
Em seu livro, Becker explica que nossos primitivos, os que mais tinham medo, eram os mais realistas em relação a nossa situação em vida. Ou seja, tinham um senso maior de sobrevivência.
Isso teve consequências, evidentemente.
O homem não se arrisca tanto. E ainda vive sob ansiedade, porque a morte está à espreita, inescapavelmente.
Nas palavras de Becker, o homem é um “animal hiperansioso que inventa constantemente razões para a sua ansiedade.”
Ainda de acordo com a teoria do antropólogo americano, nesta leitura que faço de O Veneno do Teatro, o Marquês é o leão em comparação com a gazela: “Um leão deve sentir-se mais certo do que uma gazela de que Deus está do seu lado.”
O narcisismo do Marquês, aliada a suas posses e posição social, o levam com privilégios a uma posição de risco minimamente calculado. Ele pode moldar para si mesmo um “mundo governável”. E para tal, se “lança à ação sem usar de crítica, sem pensar.”
O Veneno do Teatro é uma peça escrita pelo dramaturgo espanhol Rodolf Sirera, com tradução de Hugo Coelho.
Com direção de Eduardo Figueiredo, Osmar Prado e Maurício Machado desvelam diante de nós nossa tentativa de negar – e de vencer – nosso destino.
São 70 minutos de diálogos interessantes acerca da morte, do teatro, da mentira, da existência que é a soma desses três temas, porque, como bem diz o Marquês, “encenamos o tempo todo”.
A reflexão ainda é potencializada com a trilha sonora ao vivo tocada por Matias Roque Fidelis.
Mentimos como um esquecimento cego.
Ou melhor, encenamos.
Encenamos para vencer nos jogos sociais.
Usamos de truques psicológicos.
Dispensamos preocupações pessoais que nos levariam à loucura para conseguirmos “produzir”.
O que significa ser uma pessoa?
Para o ator, que somos todos nós, o quanto é importante ter individualidade? Singularidade?
Becker também é utilíssimo para encerrar esse artigo sobre O Veneno do Teatro:
“Se não temos a onipotência de um deus, pelo menos podemos destruir como se fôssemos um.”
E ficamos estarrecidos com o estado físico de Maurício Machado, ao final.
Ode ao teatro.
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