Ironicamente, considerando o significado de seu próprio nome, Madonna, ao longo de sua carreira interpretou o grande personagem satã, o que aparece como um “obstáculo” à vida ou algo que “desencaminha” dos bons caminhos, usando uma definição do filósofo Nilton Bonder em A Alma Imoral.
O álbum True Blue, o mais vendido de sua carreira, tem mais de 30 anos. Interessante observar a simbólica capa, onde o seu rosto em perfil mostra – além da artista já bem-sucedida – uma mulher apaixonada. True Blue é uma expressão idiomática que significa leal, verdadeiro e fiel. A quem dedicou? A Sean Penn.
Interessante também é analisar Madonna como um exemplo de emancipação feminina, ainda que estejamos um pouco distantes dos celebrados anos 1980 de True Blue. Se ela quebrou paradigmas sobre o que significava ser mulher – a pergunta de um milhão de dólares – hoje, de alguma forma, a artista batalha por uma ressignificação do que é envelhecer.
Nos anos 1980, Madonna tornou-se o próprio satã quando jogou luz sobre a escuridão de uma vida afetiva cômoda, burguesa ou não. Ainda que ela mesma tenha deslizado o tempo todo pelos extremos dessa relação desejo-puro-e-imoral e tradições-imutáveis-arquetípicas, ainda fez o que toda mulher merece ter a chance de fazer: o que quiser – e quando quiser – e se não quiser mais, voltar a ser o que um dia não quis ser. Madonna se casou no modelo mais aristocrático, foi mãe e jamais deixou de dormir com quem desejou.
Suas expressões artísticas enquanto esteve “apaixonada” não escondiam seus desejos de ser consumida pelo objeto de sua paixão e até de viver um modelo considerado, então, moralmente superior. Ainda que Madonna tenha cantado ao mundo versos que propunham às mulheres nunca aceitarem o segundo lugar, como na canção Express Yourself, ela nunca negou a arquetípica necessidade da mulher por segurança. A verdade é que, na prática, ser homem ou mulher no campo dos desejos significa deslizar o tempo todo pelos extremos, e quase sempre, inclusive, extremos de nossas próprias teorias.
True Blue ainda expressa o grande desejo de todos nós: viver uma experiência no campo afetivo que seja verdadeira, leal e fiel. Podem gritar a plenos pulmões por liberdade, homens e mulheres, e ainda continuarem inventando teorias mil sobre o quão démodé é criar laços – “pegue e não se apegue” –, mas oferecer o próprio corpo a quem se ama ainda é uma das melhores experiências que alguém pode desfrutar.
Ao namorar homens muito mais jovens, Madonna continua dividindo o mundo e libertando mulheres de seus quartos privados de imposições sociais delimitadas pela idade.
Muito mais, é claro, do que ter um corpo malhado é não ter vergonha de exibi-lo e de oferecê-lo a quem se ama.
Madonna ainda ensina que ser mulher é viver o que inflama por dentro — e essa potencia é um dos terrenos mais desconhecidos da natureza.
Como escreveu Camille Paglia nos anos 1990:
“Brincando com as proscritas da prostituta e da dominadora, Madonna deu uma grande contribuição à história das mulheres. Tornou a juntar e curou as metades divididas da mulher: Maria, a Virgem Bendita e Mãe Santa, e Maria Madalena, a prostituta.”
Talvez, hoje, Paglia discorde — como muita gente —, mas Madonna também junta as metades jovem e velha da mulher que ainda está em busca de algo que seja verdadeiro, fiel e leal — true blue é sua única canção em que não há cinismo.