Traição, abandono, medo. Quem nunca recorreu a orações quando se viu prisioneiro de dores emocionais que atire a primeira pedra. Diante de qualquer mal que aflige a alma, acreditar que há alguém que abrace a nossa humanidade traz alívio, paz e, em muitos casos, cura. Para a FAUSTO, com exclusividade, Fernando Londoño, professor de História das Religiões no programa de estudos pós-graduados em Ciência da Religião da PUC-SP, tece um panorama sobre Espaço Além – Marina Abramovic e o Brasil, o documentário da artista performática sérvia que evidencia todos esses sentimentos. Formado em filosofia pela Universidade Javeriana de Bogotá e doutor em história pela Universidade de São Paulo, o colombiano é também autor de livros e artigos sobre história do catolicismo e das religiões e dos povos da Amazônia. Uma entrevista para crentes e descrentes. Imperdível!
FAUSTO – É possível curar-se, física ou emocionalmente, por meio de práticas religiosas?
Fernando Londoño: Totalmente. Uma das funções das religiões em muitas sociedades tem a ver com cura, com a possibilidade de sair de uma situação de desconforto, desequilíbrio e dor e voltar para o exercício pleno das atividades. Temos dificuldade de entender isso devido ao entendimento que temos de cura, que veio da medicina no final do século 19 e começo do século 20. Muitíssimas outras sociedades sabem que o caminho específico da cura inclui questões particulares, que tem a ver com o que chamamos de religiões: acreditar em alguém que me protege, que se ocupa de mim, que me levará novamente para este lugar de plenitude, o que neste caso podemos chamar de saúde.
Há comprovação cientifica de cura em algum dos rituais que a Marina Abramovic participou?
Os primeiros blocos do filme tratam de João de Deus. Há um número grande de médicos que dizem “não temos como explicar” sobre os casos de pessoas que passam por esses ritos e dizem que foram curadas. A tradição da Igreja Católica, por exemplo, no final do século 19 e começo do século 20, reformulou os critérios de canonização porque começou a aceitar casos de pessoas que tinham uma doença incurável e iam morrer, mas foram curadas. Isso é algo que a medicina testemunha e não consegue explicar. Os médicos do século 20, e agora no século 21, passaram a utilizar a expressão “milagre”, que é uma expressão da tradição religiosa.
Os ritos que Marina Abramovic escolheu não fazem parte das religiões tradicionais. Seria uma forma de dizer que as religiões tradicionais não ajudam a lidar com a contingência?
Creio que o filme foi elaborado pensando em dois públicos: o que vai assisti-lo em inglês e o público brasileiro. Sobre os rituais, eles acabaram escolhendo o viés que podemos chamar, de maneira muito ampla, de Nova Era. Creio que isso fez com que fossem deixadas de fora as religiões tradicionais. No catolicismo construiu-se a tradição, desde os evangelhos, e com uma força muito grande no período medieval, que através da fé, da proteção dos santos ou da virgem, seria possível encontrar a cura. Temos algo maravilhoso na tradição ibérica, tanto portuguesa quanto espanhola, que são os ex-votos do santuário, aqueles testemunhos nos quais as pessoas agradecem aos santos por terem alcançado a cura de doenças, ou outras situações de impasse. Aqui no Brasil, temos os santuários de Canindé, Bonfim, Virgem de Nazaré e Aparecida do Norte. Eles acumulam milhares de ex-votos durante o ano. No filme, isso ficou de fora, possivelmente pelo recorte preciso sobre o qual foi construído.
De alguma forma, a maneira como Marina Abramovic busca a cura aponta que há uma tentativa do homem de colocar prazo de validade em tudo, inclusive nos sentimentos?
Um filme é feito em cima de um roteiro, de algo que se quer dizer durante todo o longa. Marina mostra caminhos específicos dessa cura, que no caso dela é o reconhecimento da dor, depois as etapas para que essa dor desapareça. Esse processo depende muito de cada pessoa, dos recursos que ela tem em sua cultura, e de suas próprias escolhas. Todos nós gostaríamos de dizer: vamos fazer tal coisa, tal tratamento e vamos conseguir. Mesmo os tratamentos mais eficientes, às vezes não dão certo. No filme, conta-se um percurso, e um percurso que deu certo para ela.
Em sua leitura, ela conseguiu se curar?
Acho que sim, ela se reconcilia com a dor e o filme termina como começa, com ela no início da caverna. É como se no início do filme ela não tivesse ainda a coragem ou os meios para entrar na caverna, ou não estava disposta a pagar o preço para entrar na caverna. E a caverna é ela. A caverna somos cada um de nós. Nossas áreas escuras e desconhecidas. Isso está bem marcado no rito que acontece em Curitiba [Centro de Estudos Ancestrais Raízes de Dan]. A xamã insiste nisso, aliás, que ela tem que se conhecer, fazer esse caminho sozinha, ver onde está essa dor, para aceitá-la e a partir de então aceitar ela mesma. O que Marina quis fazer nessa relação performance-ritual aumenta a possibilidade de transformação, que é essa cura.
Como a Ciência da Religião compreende a “cura”?
A Ciência da Religião surge como uma disciplina dos estudos das religiões e acredita que tudo deve ser analisado de forma muito específica, através da compreensão de cada religião e suas dinâmicas internas. As religiões – como assim podemos chamá-las, embora de maneira muito ampla – se constroem para ser um espaço no qual lidamos com nossas relações sociais e com a natureza. Nesse âmbito, no qual buscamos explicações ou lidamos com tudo aquilo que não vemos, também está a questão da superação da dor. Entendemos a cura a partir disso. A cura é sair de um estado desagregado, de conflito, que desorganiza todas as minhas funções para me fazer voltar a um estado de funcionamento, onde me sinto bem, onde há possibilidade de eu me sentir feliz, reconciliado, de poder me relacionar bem, tanto comigo mesmo quanto com os outros. A cura atravessa as religiões. Você encontra nas religiões muitos rituais associados à cura. Não há como a Ciência da Religião não considerar a cura no escopo dos objetos que estuda.
Uma descrição puramente religiosa do documentário “Espaço Além” pode deixar entender que se a pessoa passar por aqueles rituais, ela vai conseguir curar-se de sua dor emocional. Como seria uma descrição cientifico-religiosa desse documentário?
Discuti esse filme com meus alunos do programa de pós-graduação em Ciência da Religião, especificamente História das Religiões. Antes, porém, me fiz essa pergunta: o que eles ganhariam assistindo e discutindo esse filme? Coloquei-me como espectador, mas também como alguém que queria desconstruir o filme, de ter uma postura crítica. Marina faz a jornada como alguém que busca a cura, mas também como uma performer. A performance é se submeter aos rituais. Tentei analisar como ela constrói, dentro de suas preocupações, que é a cura da alma, a importância que tem a cura no entendimento e na prática das religiões no Brasil. O que o filme propõe é que o Brasil é um país onde a cura é possível.