Luiz Felipe Pondé: “O amor bandido não está no âmbito das decisões racionais”

Ele é pessimista, mas conhece a força do amor. Talvez por isso mesmo seja pessimista. Crítico mordaz das modas do contemporâneo — que servem à mesa e que servem à cama — Luiz Felipe Pondé é o filósofo das gentilezas perdidas. Enquanto o mundo se torna cada vez mais ridículo, usando suas próprias palavras, o amor se torna cada vez mais raro. Quando fundamenta sua trajetória intelectual em Blaise Pascal, Pondé se posiciona também como alguém que entende que o amor em seu significado é muito mais do que um sentimento: é o caminho para a descoberta de quem somos para além do vazio ontológico. Último convidado da Série Amor Amor, o autor de Amor para corajosos, com exclusividade para a FAUSTO, reflete sobre a faceta mais perigosa desse afeto: o amor bandido. A seguir!

Foto: Helmut Newton.

FAUSTO – Como você definiria amor bandido?
Luiz Felipe Pondé: Amor bandido, hoje, é se uma mulher que se envolve com um homem casado – e essa relação acaba por destruir a família – não é você, nem sua amiga; ou seu pai ou seu amigo.

[Dá risada] Por quê?
Porque se é você, ou sua amiga, estamos falando de emancipação do desejo, de superação das formas opressivas de normatividade do desejo. E se esse homem não é seu pai, ele tem o direito à liberdade, ao sexo. Agora, se for seu pai, naturalmente você não vai pensar assim…

Com total certeza não vou.
Amor bandido é aquele que acontece fora de qualquer possibilidade de significar emancipação. Hoje, especificamente, com o discurso totalitário da emancipação e da superação da normatização, e até de certa assertividade do eu, o amor bandido é algo que acontece comigo ou com alguém que eu conheço e gosto. Se não for comigo, nem com ninguém que eu conheço, os que estão traindo não são emancipados, são simplesmente canalhas e vagabundas. Agora, de qualquer forma o amor bandido está ligado à destruição: da família, do patrimônio…

Hoje, há quem ainda deseje vivê-lo?
Não gosto dessa expressão amor bandido. Ela pode nos levar a pensar em mulheres que gostam de bandido ou em “mulher de bandido”. Contudo, se significa algo transgressivo, que implica algo fora da normatividade dos afetos, acho que ninguém nunca desejou viver um amor bandido, e principalmente em nossos tempos ninguém deseja.

Por quê?
A mentira em relação aos afetos, hoje, me parece muito pior do que foi há 100, 200 anos. Por exemplo, a ideia de que um homem e uma mulher podem de fato se amar e esse amor não ter nenhuma relação com dinheiro, principalmente se ele for um homem com dinheiro e ela for mais jovem e não tiver dinheiro. Hoje, todos vão dizer que ela é interesseira e que ele é canalha. A hipocrisia social, hoje, é tão grande que a resposta para uma pergunta como essa – “há quem ainda deseje vivê-lo?” – só pode ser não. Porque, hoje, todo mundo só quer ter amor correto.

Chamo de amor bandido o amor sem lei. Amor sobre o qual não temos controle algum. Era justamente nesse ponto que eu pretendia chegar. Escolher entre um amor correto e um amor bandido é possível? O amor não está mais para uma força da natureza do que para um produto na prateleira?
O amor correto você escolhe. O amor bandido não está no âmbito das decisões racionais. Pascal já dizia no século XVII que o coração tem razões que a própria razão desconhece. As razões do amor que não é correto não são razões que cabem numa decisão objetiva, assertiva. Não acredito na hipótese de que alguém possa escolher entre amor correto ou amor bandido. Se alguém tem essa possibilidade, já está no amor correto.

Quando escolhemos um amor, diferentemente de quando o amor nos escolhe, o amor tende a ser menos encantador?
O amor parece mesmo uma força da natureza, um tsunami, uma erupção vulcânica. Como nos ensinaram os medievais, se houver a mínima possibilidade de fugir do amor, devemos fugir, olhar para baixo, não fazer nenhum contato visual. Ou seja, nunca experimentar esse amor. Agora, sim, um dos motivos do poder de enlouquecimento do amor é justamente seu caráter contingente. É o fato de você não conseguir entendê-lo, ou colocá-lo numa lógica, de responder por que esse amor aconteceu justamente com você, naquela situação. Do ponto de vista narrativo, esses contos medievais trazem situações de impossibilidade, de conflito, justamente para mostrar o caráter randômico da vida, e como o amor pode mesmo causar uma explosão na estrutura rotineira em que você vive.

O sentido construído no dia a dia é menos “místico” do que o sentido formado pelo mistério da contingência?
Se o amor construído no dia a dia é menos forte ou tem menos valor, creio que são duas experiências diferentes, apesar de que podem estar relacionadas na medida em que uma paixão louca encontra repouso no dia a dia, em vínculos, em cumplicidade, numa construção em longo prazo. Não creio que um amor que acaba encontrando o leito de um rio no qual se acalma, repousa e constrói uma vida, seja menos valioso do que um amor bandido, um amor romântico. Esse caráter místico do amor romântico está muito mais associado à mística da agonia do que a qualquer outa coisa. Como nos ensinaram os medievais, que melhor entenderam e descreveram essa estrutura, o amor romântico só é desejado por quem nunca experimentou na pele, na carne, na alma, o desespero que é desejar viver com alguém que você simplesmente não pode viver.

Devido a essa característica de nosso tempo, de sermos cada vai mais produtivos, cada vez mais focados em performance, o amor visceral se tornou um risco muito alto?
Está cada vez mais raro um amor visceral, romântico, bandido, seja o que for. A própria narrativa romântica vai buscar na Idade Média o que seria um homem e uma mulher que resistem à vida estratégica, à produtividade, à lógica da eficácia. Na medida em que isso se torna cada vez mais absoluto e hegemônico, a tendência é que por um lado as pessoas se tornem cada vez mais estratégicas e objetivas; e por outro, que os sintomas se tornem cada vez mais violentos. Ou seja, o amor romântico está cada vez mais perigoso no sistema em que vivemos.

A libertinagem pode existir apenas como uma postura intelectual? Como uma forma de se proteger tanto da hipocrisia dos afetos como do caráter destruidor dos afetos?
Numa certa medida, sim. Mas será antes de tudo uma postura intelectual como resistência. Aqui chego bem perto da psicanálise mesmo. Toda postura que é apenas intelectual é sempre uma forma de resistência; quando não, é mera forma de sintoma. Não acredito em posturas intelectuais que não estão de alguma forma enraizadas numa experiência que vai além do intelectual. Bom, essa é uma afirmação básica de todo aquele que tem uma forma de apreensão da realidade tipicamente romântica. Claro que alguém pode fazer o discurso da libertinagem contra a hipocrisia dos afetos ou contra o caráter destrutivo dos afetos. Entretanto, no primeiro caso, trata-se da dificuldade de lidar com a hipocrisia – que é a substância da moral pública em última instância. No segundo caso, é o medo de sofrer com os afetos. Tudo que é apenas intelectual, para mim é apenas uma forma de hipocrisia, resistência ou mesmo sintoma.

Sexo é uma forma de conhecer a própria alma?
O sexo de qualidade, sim, porque experimentamos transformações cognitivas, sensoriais, que proporcionam de fato autoconhecimento, assim como o conhecimento daquele ou daquela com quem estamos juntos. Agora, também pode ser uma forma de conhecer a alma na medida em que nos tornamos obsessivos, na medida em que não conseguimos controlar o desejo, e isso pode ser profundamente destrutivo. Em resumo: podemos conhecer a alma com o sexo pleno, quando o fazemos com alguém que tem sentido para nós; e quando o sexo acaba sendo a prova de que a alma é antes de tudo submetida aos desejos e aos hormônios.

Sade tinha razão ao escrever que “toda a felicidade do homem está na imaginação”?
Não, não concordo. Acho que isso é falta de imaginação. A felicidade está relacionada à capacidade intelectual, ao modo como somos capazes de enfrentar o sofrimento, no modo como lidamos com os aspectos contraditórios dos afetos, na medida em que conseguimos resistir à pressão de sermos transformados em pessoas fragmentadas, expostas às demandas de um mundo materialista como o nosso. Felicidade é algo muito mais complexo.

Ainda em Sade, “só os tolos se contém”?
Não concordo. Como não concordo com quase nada do que Sade escreve. A própria ideia de que se conter é uma ideia tola, é uma tolice. A civilização, o convívio, a capacidade de construir coisas juntos, tudo isso depende diretamente de nossa habilidade de conter nossos desejos. Até porque o desejo também só cresce na medida em que é contido.

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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