Por que Tolstói vive há 190 anos?

Comemoramos 190 anos do nascimento de Liev Tolstói.

Os grandes romances que escreveu – Guerra e Paz, Anna Kariênina e Ressurreição – não figuram entre as obras-primas da literatura universal apenas porque são histórias interessantíssimas. Figuram, principalmente, porque dizem sobre a natureza humana. Não sobre a natureza do outro – ainda que possa ser sobre a natureza do outro –, mas sobre a nossa própria natureza.

Obras-primas da literatura são como espelhos. Ou melhor! Obras-primas da literatura são como espelhos de nossa consciência.

Liev Tolstói.

No julgamento de George Steiner, crítico literário francês, quem dedicou uma obra inteira a comparar Tolstói e Dostoiévski – sem a finalidade de eleger o melhor, evidentemente – é possível considerar a “totalidade da vida” nesses três romances.

A totalidade da vida! Que exagero mais preciso esse de Steiner.

Já Vladimir Nabokov, outro russo, autor de Lolita, elegeu Tolstói como “o maior prosador russo”.

Creio ser possível dizer que Tolstói é mais do que isso. É mais porque a própria “alma russa” é mais. Ela é expansiva, expressiva, excruciante.

Interessante, antes até, é essa própria ideia de “alma russa”. Não deixa de ser aspiração de todos aqueles que escrevem e que, condenados pela geografia, encontram amparo apenas na liberdade poética. Os russos escritores parecem que já nascem expansivos, expressivos, excruciantes.

Percebo, sim, que soa quase como um conluio essa coisa com Tolstói, porque não há quem se posicione contra o seu status. Ou há, mas apenas por predileção.

O pungente é o labirinto das emoções de Tolstói. E muitas vezes parece que não há saída esse labirinto e dá vertigem. Nem todos apreciam isso. Principalmente porque isso é a vida real.

Mesmo o crítico russo Nicolai Mikhailovski, mencionado por Isaiah Berlin, quando classifica Tolstói como um “mau pensador”, ainda assim o exalta como prosador.

Em Ressurreição, por exemplo, Tolstói é o pensador do amor que é sofrimento, mas que também leva à redenção. Há um tipo de dor que vive aquele que ama que acaba por redirecionar a vida. É minúcia tão astuta que às vezes nem se percebe. Às vezes privilégio, quase sempre penúria.

Evidentemente, apenas o talento de contar histórias não bastaria para destacar Tolstói como o maior, principalmente porque houve e há outros escritores tão magistrais quanto: o próprio Fiódor Dostoiévski, Nikolai Gógol, Maksim Górki, Anton Tchekhov e Ivan Turguêniev.

Então, qual seria o diferencial de Tolstói?

Um deles, certamente, é sua capacidade extraordinária de não deixar passar os temas que calam fundo na alma, temas como vida e morte, amor, paixão, pecado, perdão e, principalmente, redenção.

Parece simples, mas não é. Tolstói, neste caso, é como Bach nos cânones 1 e 2 de sua Oferenda Musical. Ou seja, os estados de nossa natureza podem ser lidos como acontecem – linearmente – mas também podem ser lidos de outras formas: de trás para frente, sobrepostos, ou em várias vozes simultâneas. Tolstói é o Bach das letras.

Tolstói soube, como poucos, que só quem vive consciente de sua própria insuficiência é incapaz de se orgulhar de qualquer progresso moral, ou seja lá o que for, porque sabe a força destruidora, por exemplo, de um simples cacho de cabelo.

Isaiah Berlin também diz sobre esse diferencial de Tolstói: “o que faz a excelência dos bons escritores é a capacidade de enxergar a verdade, social e individual, material e espiritual, e apresentá-la de modo que se torne impossível se esquivar a ela.

Anna Kariênina falou a adúlteras ao longo de pouco mais de um século. Falou também àquelas que sonharam com um amor vivíssimo, muitas vezes fora de seus casamentos, mas porque eram mulheres fiéis, como Dolly, só poderiam mesmo suspirar ao folhear cada página e, no fim, absolver Anna de seu pecado.

São muitas as vozes em Tolstói. Vozes lineares, vacilantes, contraditórias em si mesmas, vozes incompreensíveis, confusas, vozes de choro e até mesmo vozes que não dizem nada. Pierre, de Guerra e Paz, em sua constante insegurança, o que diz? Vozes humanas.

O que Isaiah Berlin quis dizer é que as experiências do escritor, seu caráter e seus sentimentos, permitiram que sua escrita dissesse “a verdade a um nível suficientemente profundo”. E é isso que leva seus leitores, inevitavelmente, a “questões morais fundamentais”. O que, por sua vez, impossibilita esses mesmos leitores a responder a essas questões sem uma “autoanálise rigorosa e dolorosa”.

É, impossibilita.

Alguém que exige de si mesmo experiências verdadeiras, para então escrever, deixa claro que tem espectro muito maior e mais profundo de assuntos. E não só isso. Que esses assuntos são capazes de “enriquecer consciências”, como escreveu Steiner.

Não é a grande cilada de nosso tempo a “tentação da facilidade, da vulgaridade e do conforto efêmero”, como apontou o francês?

Por isso é que Tolstói continua vivíssimo. E necessário. Profeta ou apenas um homem profundo.

Não houve em suas letras comiseração pelos mais fracos, houve participação na dor. Não houve emoções melodramáticas sobre os grandes dramas humanos, houve a consciência de um papel a desempenhar. Na perspectiva de Tolstói, podemos e devemos viver para além de nós mesmos.

Ainda que as situações que Tolstói tenha narrado em suas ficções tenham lições morais – possíveis de se colocar em prática todo o tempo, enquanto houver vida humana sobre a terra -, elas quase nunca deixam também de pontuar a inutilidade da busca pela vida perfeita. Ou pelo menos não como a buscamos.

A vida perfeita para Tolstói é aquela em que nos deixamos de lado por amor a alguém.

Ainda que em Tolstói não haja propriamente uma saída, em Tolstói ao menos há lampejos do que não podemos abrir mão, há lembretes de nossas obrigações. E isso, claro, já é muito.

 

Dedico a Gustavo Filippi.

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.