Albert Camus: “O ressentimento é sempre um ressentimento contra si mesmo”

Albert Camus arrombou as portas do absurdo. O autor trágico vivido no século XX deu a quem que não tem esperança o nome de estrangeiro. Nascido em 1913, em Mondovi, Argélia, formou-se em Filosofia pela Universidade de Argel e em 1938 mudou-se para a França. Em 1957, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura e deixou de vez a marca na história do Pensamento como um dos grandes autores das sombras. O filósofo e ensaísta argelino morreu em 1960. Segundo entrevistado da Série Além – Entrevistas do outro mundo, prestamos tributo a Camus, recebendo-o na FAUSTO. Mergulhamos em seus escritos como em busca de um tesouro no fundo do mar e então imaginamos conversar com este para quem nem mesmo o escuro e sombrio fundo do mar pode deixar de despertar a mais dilacerante paixão. Como bem escreveu: “Criar é viver duas vezes“.

Albert Camus
Albert Camus (1913-1960).

FAUSTO – Agradeço o tempo precioso de seu descanso para realizar essa entrevista. Gostaria de falar sobre um tema que, particularmente, perturbou-me muito nesse ano recém-findado…
Albert Camus: Não se poderia desejar palavra mais exata. Começar a pensar é começar a ser atormentado. Adquirimos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar.

Pois é, mas não é nada confortável…
Pensar é reaprender a ver e a estar atento, é dirigir sua consciência, é dar a cada ideia e a cada imagem, à maneira de Proust, um lugar privilegiado.

Sim… Bom, deixemos minhas angústias para lá… Gostaria de falar sobre ressentimento. Considero um assunto e tanto, principalmente porque tem saído da esfera individual e perceber isso tem sido assustador!
O ressentimento foi muito bem definido por Scheler como uma autointoxicação, a secreção nefasta, em um vaso lacrado de uma impotência prolongada.

Nem tão lacrado assim, creio. Pelo menos não mais. Talvez porque estamos reparando mais, mas o que parece é que os ressentidos não estão mais preocupados em disfarçar nada…
O ressentimento é sempre um ressentimento contra si mesmo.

Sim, faz sentido. Os mais misericordiosos conseguem olhar os ressentidos com compaixão. Mas há outra questão aí. Quando Nietzsche trata o assunto, ele diz que o ressentimento sai da esfera individual – inclusive passa a considerá-lo um problema social. É quando entra em jogo a inveja para unir forças?
Scheler tem razão quando diz que a inveja dá um colorido forte ao ressentimento. Mas inveja-se aquilo que não se tem, enquanto o revoltado defende aquilo que ele é. Ele não reclama apenas um bem que não possui ou do qual teria sido privado. Visa fazer com que se reconheça algo que ele tem e que já foi por ele reconhecido, em quase todos os casos, como mais importante do que qualquer coisa que pudesse invejar. A revolta não é realista. Ainda de acordo com Scheler, o ressentimento, segundo crença em uma alma forte ou fraca, transforma-se em um arrivismo ou em amargura. Mas, em ambos os casos, a pessoa quer ser algo que não é.

Já ía entrar nessa questão… Sua visão, que parte dos conceitos de Max Scheler, compreende o ressentimento como algo negativo e a revolta como algo positivo. Pode elencar as principais diferenças entre ressentimento e revolta?
A revolta fragmenta o ser e ajuda-o a transcender. Ele liberta ondas que, estagnada, se tornam violentas.

Chama isso de tomada de consciência…
Por mais confusa que seja, uma tomada de consciência nasce do movimento de revolta: a percepção, subitamente reveladora, de que há no homem algo com o qual pode identificar-se, mesmo que só por algum tempo. Até então, essa identificação não era realmente sentida.

E aí, claro, ele não consegue mais viver como antes…
O revoltado quer ser tudo, identificar-se totalmente com esse bem do qual subitamente tomou consciência, e que deseja ver, em sua pessoa, reconhecido e saudado – ou nada, quer dizer, ver-se definitivamente derrotado pela força que o domina. Na origem da revolta há um princípio de atividade superabundante e de energia.

Creio que o ressentido nunca consegue se enxergar ressentido. Ele tem convicção de ser um revoltado. Scheler tratava os dois termos da mesma forma…
Não se compreende por que Scheler identifica de forma absoluta o espírito da revolta com o ressentimento. Sua crítica do ressentimento no humanitarismo (que ele trata como uma forma não cristã do amor humano) seria aplicada talvez a certas formas vagas de idealismo humanitário ou às técnicas do terror. Mas pisa em falso no que se refere à revolta do homem contra sua condição, o movimento que compele o indivíduo à defesa de uma dignidade comum a todos os homens. Scheler quer demonstrar que o humanitarismo se faz acompanhar do ódio ao mundo. Ama-se a humanidade em geral para que não se tenha que amar os seres em particular.

O cientista político português João Pereira Coutinho, quem estimo muito, escreveu certa vez em sua coluna no Correio da Manhã, jornal de Portugal, que a história da humanidade não é como pensa Karl Marx, uma eterna “luta de classes”, mas, sim, “uma perpétua luta de ressentimentos”…
Isso quer dizer que nenhuma revolta é carregada de ressentimento? Não, e sabemos bastante sobre isso, no século dos rancores. Mas devemos entender essa noção em seu sentido mais abrangente, sob pena de traí-la, e, sob este aspecto, a revolta transcende o ressentimento.

Em sua visão, que é contrária em parte da de Scheler, existe um elemento essencial que diferencia a revolta do ressentimento: a paixão.
Nunca é demais insistir na afirmação apaixonada subjacente ao movimento de revolta e que o distingue do ressentimento. Heathcliff prefere seu amor a Deus e clama pelo inferno para que possa juntar-se à sua amada. O mesmo movimento faz com que Mestre Eckhart, em um surpreendente acesso de heresia, diga que prefere o inferno com Jesus ao céu sem ele.

Então, é importante verificar se há paixão, antes de entender qualquer coisa como revolta ou ressentimento. Bom ponto de partida, talvez… Agradeço por embarcar nessa viagem com a FAUSTO.
Só o equilíbrio entre a evidência e o lirismo nos permite aceder ao mesmo tempo à emoção e à clareza.

Que bonito! Creio que nossa linha editorial tem um tanto disso, nobre Camus…

 

Dedico à Eliza Jorge Penna.

Nota 1: Devo a ideia da série ao grande escritor Mario Prata, quem me impressionou pela genialidade e criatividade, em 2015, com o maravilhoso livro Mario Prata entrevista uns brasileiros.

Nota 2: Todas as respostas são trechos autênticos dos livros de Albert Camus. Nada foi alterado ou adaptado. Tive o imenso cuidado de preservar a integridade de seus pensamentos.

Nota 3: Realizei pesquisa bibliográfica para construir o contexto. Os livros e artigo lidos seguem abaixo.

Referências Bibliográficas
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2017.
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
PASCHOAL, Antonio Edmilson. As formas do ressentimento na filosofia de Nietzsche. PHILÓSOPHOS 13 (1): 11-33, jan./jun. 2008.

 

Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.

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