As reflexões que lerá a seguir provocarão elevação espiritual. O tipo que só a literatura é capaz, porque diz sobre a dimensão espiritual do homem. O assunto central é Russell Kirk, um dos mais influentes intelectuais do século XX. Quem fala sobre o escritor americano, parte da Biblioteca Crítica Social, coleção lançada pela É Realizações, é Alex Catharino, quem assina o elegante Russell Kirk – O peregrino na terra desolada. Formado pela UFRJ, o historiador é membro da Edmund Burke Society, T. S. Eliot Society e é residente do Russell Kirk Center for Cultural Renewal, nos Estados Unidos. Com exclusividade para a FAUSTO, Catharino apresenta razões para ler Russell Kirk e se aventurar nas referências do americano que diz muito sobre o que realmente é ser um conservador. Embarque nesse bate-papo cheio de imaginação!
FAUSTO – Ler Russell Kirk esclarece quais equívocos sobre o que é ser conservador?
Alex Catharino: Russell Kirk mostra que ser conservador não quer dizer ser rabugento, alguém que olha o mundo sem esperança. Theodore Dalrymple brinca sobre ser um velho rabugento, sentado numa cadeira, olhando o mundo por uma janela. Russell Kirk, no entanto, não é assim. Ele olha para as pessoas, para a realidade e a natureza. Kirk passou 50 anos plantando árvores! Alguém que planta uma árvore acredita no futuro. Kirk, então, é essa eterna criança, sempre mimado pela esperança. Inclusive, ele começa sua autobiografia falando sobre o seu herói de infância: o marinheiro Popeye: “Eu sou aquilo que eu sou.” Uma frase que lembra o filósofo espanhol Ortega Y Gasset: “Eu sou eu e minha circunstância.” Para Kirk, o conservadorismo é a união da razão e dos sentimentos. Ou seja, conservador não é um reacionário, que quer voltar para um passado utópico, que nunca existiu. Como não é um imobilista, que quer congelar o tempo. Da mesma forma, ele não é um progressista, contra o qual luta, que é aquele que quer sacrificar o presente em nome de um futuro incerto. O reacionário quer sacrificar o presente em nome de um passado idealizado. O imobilista quer matar o passado e o futuro em nome de um presente. Somos todos prisioneiros do presente. O conservador sabe que a vida é uma dança entre passado, presente e futuro. E a leitura de Kirk ainda nos dá amor, poesia, razão, beleza e virtude.
O escritor americano Gregory Wolfe, em A beleza salvará o mundo, diz que Kirk “pode ser o pai do conservadorismo moderno, mas muitos dos seus filhos o renegaram ou se recusam a reconhecer sua paternidade”. Wolfe pontua que isso é uma grande perda. A que se deve essa renegação?
Renegam Kirk porque ele foi um conservador que nadou contra a corrente. Muitos conservadores americanos apoiaram causas que Kirk foi contra.
Quais seriam elas?
Kirk foi contra, no primeiro momento, que os Estados Unidos entrassem na Segunda Guerra Mundial. Ele achava que se tratando de política externa os americanos não deveriam se portar como polícia do mundo. Kirk viu o uso de armas nucleares contra o Japão como uma derrota moral. E Kirk, em cartas, diz que não vê diferença entre os crimes que os nazistas cometeram nos campos de concentração e o que os americanos fizeram com Hiroshima e Nagasaki. Quando um conservador fala isso, coloca a moralidade na cena política. Ele também discordou muito de um amigo dele, William Buckley Junior, que tem um livro chamado God and Man at Yale, no qual critica professores marxistas que não dão espaço para a religião nas universidades.
O que fala Buckley?
Buckley Junior fala que esses professores deveriam ser tirados do quadro e Kirk, ao escrever sobre educação, defende a liberdade educacional irrestrita. Ou seja, o erro deve ser pontuado. Se nossos adversários intelectuais defendem o erro, não temos que combatê-los com a censura e sim com a promoção de ideias melhores. Kirk foi um conservador que se pôs contra a Guerra do Vietnã. Ele disse que a única coisa boa dessa guerra foi ter hospedado uma família de 11 vietnamitas em sua casa e suas filhas terem aprendido algo da cultura vietnamita. Kirk abrigou etíopes, croatas. Ele hospedava pessoas que fugiam de ditaduras. Kirk também foi contra a perseguição aos comunistas. Foi contra ao apoio incondicional dos Estados Unidos a Israel. Ele reconhece a importância do Estado judeu no Oriente Médio e defendeu Israel em vários pontos, mas ele sabia que a política externa de Israel nem sempre está certa. Outro ponto: ele se opôs à invasão americana ao Líbano. Kirk, no fim de sua vida, se posicionou contra a Guerra do Golfo. Ele se tornou de certo modo o grilo falante do pensamento conservador americano que vai nadar contra a corrente. Quando você tem o conservadorismo ideológico que justifica algumas posturas de determinados segmentos do Partido Republicano e uma figura como Kirk, que dialogava com democratas, você não ganha voto. Kirk escreveu um obituário belíssimo do Malcolm X. Ele reconheceu a virtude em um homem com o qual discordava. Num momento de política ideológica, uma voz como a do Kirk, que reconhece virtudes nos adversários, não é algo bom. Você não ganha voto elogiando o adversário, você ganha voto atacando.
Considerando o cenário político brasileiro atual, por quais razões deveríamos trazer para o debate as reflexões propostas por Russell Kirk?
Russell Kirk tem sido lido há algumas gerações. O primeiro a citá-lo foi João Camilo de Oliveira Torres, no livro A Democracia Coroada. Na bibliografia consta a obra The Conservative Mind. Em Os Construtores do Império, Camilo utiliza a metodologia de The Conservative Mind para descrever o que é a mentalidade conservadora brasileira. Kirk também é citado por Ricardo Vélez Rodrigues, como da mesma forma pelo meu finado mentor, o saudoso Ubiratan Borges de Macedo em um texto dos anos 1980. Por fim, o embaixador J. O. Meira Penna, em O Espírito das Revoluções, recentemente reeditado, cita Kirk várias vezes. Essa tradição de pesquisa sobre o pensamento do Kirk já tem quase cinco décadas. A visão dele de conservadorismo, inclusive, é muito semelhante à de alguns pensadores do passado como Visconde de Cairu, que em 1818 traduz as obras de Burke para o português; Joaquim Nabuco, que defende a importância da imaginação, semelhante à ideia de imaginação moral do Kirk; Gilberto Freyre, com sua visão de sociedade; e, por fim, o já citado João Camilo de Oliveira Torres. Kirk dialoga com a cultura brasileira. Ele não quer transformar a própria visão conservadora numa importação da visão norte-americana, francesa ou inglesa. Ele diz que o conservador deve buscar na própria cultura essas raízes. Kirk discute não a política pela política, mas a política com a cultura. A tradição, não só do nosso próprio país, mas de outras culturas que nos influenciaram. Kirk traz um arejamento na política brasileira que evita o mal da ideologia. Ele é um conservador que vai nos afastar da ideologia. E vai nos mostrar que ser conversador não é defender uma pessoa, um partido, um programa ideológico. Ser conversador é antes de tudo defender a nossa cultura.
As escolas de ensino de base pouco tratam desses autores, não?
Há um autor que considero um dos maiores analistas do Brasil: Francisco José de Oliveira Viana. No livro Instituições Políticas Brasileiras, ele diz que o intelectual sofre de alienação. Influenciado pelo pensamento francês, alemão e um pouco pelo pensamento norte-americano, ele tenta estar à frente de seu tempo. Nessa tentativa, ele perde de vista o homem comum. Quero citar também um grande literato que me influenciou muito, confesso: José Bento Monteiro Lobato. Gênio! Todos eles são grandes defensores do senso comum, do homem simples. O intelectual se aliena. Ele quer mudar a consciência do homem comum. Ele acha que tem o plano perfeito. Só que o plano perfeito dele entra em conflito com a realidade. E tudo isso tem a ver com o pensamento do Russell Kirk. Se minhas ideias não se adéquam à realidade, pior para minhas ideias. A realidade é maior. O intelectual precisa redescobrir isso. É nesse sentido que eu digo. Você vai encontrar o pensamento conservador genuíno não necessariamente nesses teóricos todos, mas na literatura de um Ariano Suassuna ou na música de dois gênios: Luiz Gonzaga, a voz do homem comum; e Cartola, conservador por excelência. Cabe ao intelectual ser um pouco mais humilde e Kirk o tempo todo diz isso: humildade é importante. E ensina moral política por intermédio de contos de fadas e literatura. E nós temos que redescobrir isso.
Como analisa os personagens mais famosos de Monteiro Lobato?
Monteiro Lobato foi um gênio, mas um gênio que de certo modo foi influenciado pela imaginação idílica, esta que nos oferece outro mundo possível, assim como a imaginação diabólica oferece um mundo em que o ruim passa a ser visto como bom, e você perverte a humanidade. Monteiro Lobato tem um pouco dessa formação idílica. Ele, que é um progressista, traz a figura do intelectual em Visconde de Sabugosa. Visconde é o intelectual muito teórico, por isso inadequado na prática. Por outro lado, temos a figura rebelde da Emília, que é a criança no estado de natureza. Emília é a versão de Emílio de Rousseau. É aquela criança que a sociedade não deu os bons modos. A sabedoria e a genialidade do Sítio do Picapau Amarelo revelam-se em três figuras: Dona Benta, a tradição; Tia Nastácia, a negra, pouco educada, mas que dá o coração; e minha personagem favorita: Tio Barnabé. Ele seria o grande mestre Jedi. Pedrinho é o aprendiz de Jedi. Quem ensina Pedrinho a capturar o Saci é o preto velho, aquele homem do interior, analfabeto, humilde, o senso comum.
Por que a literatura é tão importante na formação do caráter?
A literatura é o espelho da alma. Conseguimos entender, pela literatura, muito mais a natureza humana do que por intermédio de tratados filosóficos. Se pegarmos o filósofo que marca o pensamento moderno: Thomas Hobbes. Ele foi um profundo leitor de Shakespeare. Talvez as discussões mais profundas da teologia de Tomás de Aquino são apresentadas de modo mais didático em A Divina Comédia de Dante Alighieri. A inquietude da alma moderna se expressa melhor na poesia e no teatro de Eliot do que nos escritos filosóficos de um Bertrand Russell. É por esta visão literária que Kirk vai desenvolver a noção de imaginação moral. A literatura ocupa um lugar fundamental porque não informa apenas nossa razão, mas também nossos sentimentos. Ela nos guia para a verdade, para a esperança e para o amor. Ela é razão e paixão combinadas.