Franco Moretti: “Rejeitar romances de formação porque não lidam com minorias me parece um sinal narcísico”

O Romance de Formação, livro do italiano Franco Moretti, entra no pensamento e nas emoções de todo aquele que sabe que poucas conversas são mais urgentes e necessárias do que aquelas sobre os livros. Sejam os ditos romances educacionais ou qualquer um sobre o qual tentemos nos salvar, esses títulos nos dão o chão, o alívio e o espelho. Todo o tempo, sim, mas principalmente nos dias de incerteza, a certeza de que Goethe e Austen estarão sempre ao lado funciona como antídoto para o esmorecimento da alma. E assim, com exclusividade para a FAUSTO, o renomado teórico da literatura que fundou em Stanford o Centro de Estudos do Romance, conversa sobre eles.

romances de formação
Franco Moretti, autor de O Romance de Formação.

FAUSTO – É possível ler romances de formação sem categorias religiosas?
Franco Moretti: O romance de formação é uma forma secular, que substitui a orientação religiosa das histórias de conversão, por exemplo, como de O Peregrino, de John Bunyan, que alguns consideram uma espécie de romance de formação original. Os romances de formação são totalmente terrenos, porque terminam em casamento, morte, sucesso financeiro ou renúncia, como queira.

A literatura é uma das poucas coisas que nos dá segurança ontológica?
Uma das belezas da literatura reside precisamente em fazer as grandes perguntas sobre a vida humana, porém, sem submetê-las a um padrão religioso ou metafísico.

Em tempos digitais, ainda é possível ler Guerra e Paz, Fausto ou Dom Quixote?
Estamos lendo textos cada vez mais curtos, e os três trabalhos mencionados são muito longos. Então, provavelmente serão muito mais difíceis de terminar, para todos os tipos de leitores.

Porque mesmo quem gosta de ler está envolvido no mundo digital…
Então, na história da narrativa sempre houve uma luta entre formas curtas e longas, e muitos grandes romancistas do século XIX – Balzac, Dickens, Dostoiévski – jogaram em ambas as mesas, publicando primeiro textos curtos e depois os coletando em um único volume.

As séries de TV comprometem a beleza dos romances de formação dos séculos XVIII e XIX?
As séries de TV estão desempenhando um papel semelhante hoje em dia; mas é mais difícil ver, de maneira comparável, quais formas escritas podem estar funcionando. Agora, é possível que o prazer estético específico da forma longa – dos grandes romances educacionais dos séculos XVIII e XIX – desapareça lentamente do horizonte dos leitores contemporâneos e futuros.

O romance de formação nos permite alcançar a “maioridade”, que cita Kant?
O romance de formação sempre teve alguma forma de “maioridade” como estrutura – seja no sistema dos personagens ou na voz do narrador –, mas é duvidoso que seja a autonomia iluminada que Kant tinha em mente.

O romance de casamento – e a ideia do “final feliz” – perdeu espaço em nosso tempo em comparação com o romance de adultério?
Certamente, parte da vida adulta tem a ver com o reconhecimento, algo claramente expressado por Goethe nas afinidades eletivas, de que um casamento não é uma “conclusão” plausível para a vida humana – provavelmente o início da própria vida adulta. A esse respeito, o romance de namoro que termina em casamento e o romance de adultério podem ser vistos tanto como segmentos consecutivos na vida humana quanto como modelos opostos de organização narrativa.

Precisamos de teorias literárias em que momento da leitura?
Nunca “precisamos” de teorias para ler literatura: isso é claro. Bilhões de pessoas leram com prazer e, frequentemente, com inteligência, sem ter lido uma única palavra da teoria literária.

Qual é a função das teorias literárias?
A função das teorias não é ajudar-nos a apreciar mais a literatura, mas examiná-la de um ponto de vista em que o prazer estético não é mais o elemento-chave. A teoria literária é uma maneira de entender a literatura, e de até mesmo entender o prazer que a literatura pode nos dar; que relação – se houver –, entre compreensão e desfrute, é outra história.

Este é sua opinião particular?
Em minha opinião, eles pertencem a diferentes reinos. A árvore da vida e a árvore do conhecimento crescem em jardins separados. E seus frutos têm um sabor muito diferente.

É necessário rejeitar os romances de formação que não tratem das minorias?
Em sua fase clássica e esplêndida, os romances de formação não lidavam com maiorias – mulheres, por exemplo, eram camponesas, trabalhadoras manuais. Rejeitar romances de formação porque não lidam com minorias me parece um sinal narcísico, típico de nossa época. Contudo, lembre-se: quase todo trabalho de cultura “não lida” com causas políticas que alguém possa considerar preciosas. Então, rejeitar os romances de formação, nesse sentido, resultará numa estante de livros muito, muito, muito pequena.

 

Agradecemos a leitura!
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Eliana de Castro Escrito por:

Fundadora da FAUSTO, é escritora, mestre em Ciência da Religião e autora do romance NANA.